Sempre lembrado por sua morte, Vladimir Herzog a partir de agora poderá ser rememorado também por sua vida. Tornado personagem central da história do Brasil após perecer brutalmente num covil da ditadura militar em 1975, o jornalista tem sua trajetória, atuação profissional e a produção cultural e intelectual de seus breves 38 anos reunidas digitalmente no site Acervo Vladimir Herzog.
Com documentos, fotos, textos, periódicos e vídeos que mostram desde a infância de refugiado iugoslavo na Segunda Guerra na Europa à chegada ao Brasil e a típica vida de um menino da Mooca dos anos 40 e de adolescente paulistano dos 50, até as passagens pelos principais veículos de comunicação do Brasil e do exterior, o acervo com itens de toda a vida do jornalista tem lançamento com live nas redes sociais às 19 horas desta sexta-feira, 26 de junho, véspera do que poderia ter sido seu aniversário de 83 anos.
Além de se impressionar com os números superlativos envolvidos na empreitada para reunir e colocar esse monumental acervo em pé, não há como não se emocionar ao ver as imagens de um menino feliz segurando galinhas, o sorriso e a gola da camisa cuidadosamente engomada para a foto da escola pública e para a carteirinha de passe escolar da CMTC e uma redação por ditado escrita aos onze anos para o exame de admissão ao primeiro ano do Colégio Estadual de São Paulo em 1949 com o título de “Saudade”: “Os lugares trágicos recebem sempre do tempo a compensação de uma velhice pacífica e amável na decadência. Não há ruínas cruéis; as masmorras vazias não são temerosas…”
DItado e cartão do passe escolar de Vladimir Herzog Foto: Acervo Vladimir Herzog
Para quem se lembra do que era ter uma cadernetinha de bolso com índice alfabético, espaços para nomes, telefones e endereços não há como não dar aquele pequeno sorriso de grata surpresa ao se deparar com os nomes de Anselmo Duarte, Arnaldo Jabor e Antonio Abujamra anotados com uma letra caprichosa por Herzog logo na letra A ao lado de números telefônicos de apenas seis dígitos, como o sonoro 26-7749 de Arnaldo.
Caderneta de endereços de Vladimir Herzog com os nomesde Anselmo Duarte, Arnaldo Jabor e Antonio Abujamra Foto: Acervo Vladimir Herzog
Os nomes ligados ao cinema e ao teatro na cadernetinha não são apenas contatos de fontes da área cultural para um jovem jornalista em início de carreira no principal jornal do País. Os palcos e as telas eram mais que uma diversão natural da época. Se os ofícios criativos do cinema dos quais se aproximaria num futuro próximo ainda pareciam distantes naquele início dos anos sessenta, a atuação teatral era uma realidade desde a adolescência. Foi num desses grupos que conheceria uma pessoa chave em sua vida, a atriz Lélia Abramo, a quem se atribui também a abertura das portas do jornalismo para Vladimir Herzog apresentado-o a Claudio e Perseu Abramo, que exerciam posições de comando neste Estadão.
Contratado pelo jornal como “noticiarista” em maio de 1960 após um período de experiência iniciado em 1959, conforme consta em sua carteira de trabalho [um dos vários itens da seção ‘registros civis’ do site], seria na redação do Estadão no número 28 da rua Major Quedinho, no centro de São Paulo, que Herzog teria sua formação como jornalista após cursar a faculdade de filosofia na Universidade de São Paulo.
E que período de experiência. Após alguns meses de típicas reportagens destinadas a repórteres iniciantes, como a abertura da Festa do Vinho de São Roque e a inauguração de uma escola estadual pelo brigadeiro Eduardo Gomes no interior de São Paulo, Vladimir Herzog seria mandado para uma prova de fogo do jornalismo em abril de 1960: a grande cobertura da histórica inauguração de Brasília. A partir dali, a política seria o seu novo ambiente, viajando pelo Brasil acompanhando candidatos na campanha eleitoral para suceder Juscelino Kubitschek, culminando com a volta a Brasília no ano seguinte para a posse de Jânio Quadros.
Vladimir Herzog na cobertura da inauguração de Brasília Foto: Acervo Vladimir Herzog
Entre os dois fatos históricos, uma pauta deixaria Vladimir Herzog impressionado e o mudaria para sempre: a cobertura da viagem dos filósofos franceses Jean Paul-Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil. O impacto das falas de Sartre foram fundamentais para uma guinada de Herzog rumo ao jornalismo cultural e, mais que isso, uma completa transformação em seu modo de pensar a cultura e sua ligação com a vida das pessoas. Até então com gosto bastante erudito, apreciador de ópera, teatro sofisticado e cinema francês, Vlado, como também era chamado, experimentou ao presenciar as falas de Sartre uma daquelas experiências transformadoras que de vez em quando temos na vida. As questões estéticas passaram a ter agora a companha obrigatória das questões sociais.
A transformação deste homem pré e pós Sartre pode ser vista no vasto material disponível no site que conta com quase 3 mil itens digitalizados a partir de 1.700 documentos, como cartas, bilhetes, manuscritos e fotografias de todas as fases da vida coletados num trabalho arquivístico que beira o primoroso. Além de possibilitar ver Herzog nas suas diferentes fases da vida, o site contém centenas de imagens de autoria do próprio Herzog, sendo possível ver através de seus olhos estudos para o projeto de um documentário sobre Antonio Conselheiro e Canudos, como também prosaicas cenas do cotidiano familiar em passeios com a mulher e os filhos. Imagens e memórias de um homem vivo.
Vladimir Herzog no Estadão
Em março de 2017, a então estudante de jornalismo Caroline Simões escreveu para o Acervo Estadão uma mensagem diferente de todas que costumamos receber dos futuros repórteres. Em vez de solicitar a possibilidade de uma pesquisa sobre a história do jornal, pretendia descobrir todos os textos de autoria de Vladimir Herzog publicados no Estadão, inclusive os não creditados, dos quais soube através de entrevistas com colegas que trabalharam com o jornalista nos anos sessenta. “Como ninguém tinha pensado nisso antes?”, foi a nossa reação aqui no Acervo.
Dias depois, as portas, e também os infalíveis índices do jornal concebidos por Armando Augusto Bordallo nos anos 50, estavam abertos para Caroline realizar o levantamento que aqui segue com reportagens de autoria ou atribuídas a Vladimir Herzog, bem como menções a ele em eventos do jornal. Pequena parte destes registros foi acrescentada pela equipe de pesquisadores do Acervo Vladimir Herzog coordenada por Luis Ludmer, que rastrearam traços do estilo de Herzog em matérias não assinadas, a quem o Acervo Estadão agradece por aprimorar e compartilhar esse material histórico.
Reportagem de Vladimir Herzog sobre a viagem de Rita Hayworth ao Brasil. Foto: Acervo Estadão
Por Estadao