Quem conhece a extensa obra de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) costuma se admirar ao proceder a alguma contabilidade em torno do que ele produziu. Escrever nove romances, duas centenas de contos, quatro livros de poesia, mais crítica, tradução e correspondência, no espaço de cinco décadas, não é feito desprezível, ainda mais se levarmos em conta as demais ocupações profissionais e o ambiente culturalmente rarefeito em que o escritor viveu. A sua produção jornalística é um caso à parte. A julgar pelas coletâneas de crônicas, editadas nos últimos anos, estamos a falar de algumas centenas delas. Digo melhor, estávamos, porque acabam de chegar à praça dois volumes de crônicas, inéditas em livro, assinadas pelo Dr. Semana – um dos pseudônimos adotados por Machado, quando colaborou com o jornal Semana Ilustrada, do Rio de Janeiro, entre junho de 1869 e março de 1876.
Estamos diante de um fenômeno assombroso (tanto pelo volume e pela qualidade dos textos, quanto pelo projeto) que Sílvia Maria Azevedo – docente da Unesp-Assis –, uma das maiores pesquisadoras da obra machadiana, realizou no espaço de dois anos (entre 2010 e 2012)*. Como terá ela chegado a estabelecer esses textos, atribuindo-os a Machado? Concedamos a palavra à própria estudiosa: através da “leitura sequencial das crônicas, a partir da qual foram identificados traços recorrentes em relação a temas, referências históricas, culturais e literárias, citações, recursos estilísticos”. Para certificar-se do rumo que o trabalho tomou, a pesquisadora salienta que “[…] o levantamento dessas constantes foi cruzado com a leitura de outros textos machadianos (crítica literária, teatral, crônica, teatro, tradução, contos, romances), publicados em período correspondente àquele das Badaladas” (tomo I, p. 10).
Àquela altura, Machado de Assis já havia demonstrado combatividade como cronista e crítico de outros periódicos, o que talvez explicasse o caráter polêmico de seus textos. Religião e política estavam no cardápio do cronista, que reconhecia a importância estratégica das controvérsias trazidas a público para provocar ruído, trazer leitores e aumentar o alcance e a venda do jornal. A exemplo do que acontece ainda hoje, matéria-prima não lhe faltava: “Leitor atento dos jornais da Corte e de outras províncias […] era nas seções que reproduziam os debates no Senado e na Câmara dos Deputados aonde o cronista buscava munição para as suas crônicas” (tomo I, p. 19).
Ora, em se tratando de Machado, nem tudo é dito às claras. Esse criador de personagens complexas e enigmáticas como Helena, Sofia, Capitu, Flora e Fidélia recorreu com frequência ao discurso oblíquo, com que simulava o contrário do que pretendia, confundindo decerto parte de seus leitores. Isso porque, “[…] ao lado de temas antigos tratados de forma nova, há também nas Badaladas outros inteiramente novos, como a ‘crítica às avessas’, denominação de Raimundo Magalhães Júnior para um gênero de crítica, de fundo humorístico” (tomo I, p. 22).
Sílvia Azevedo demonstra que, além de estilizar provérbios, compor trocadilhos e disseminar charadas, o Dr. Semana também recorreu à paródia, ao redigir as suas crônicas mordazes. Além de Shakespeare e Molière, o “baladeiro” aludia a outros escritores e obras em profusão, quase sempre em linguagem galhofeira, nos moldes como procederia o defunto-autor Brás Cubas – cinco anos após o encerramento da coluna na Semana Ilustrada: “Na [crônica] de 26 de setembro de 1869, […] as tragédias Hamlet e Romeu e Julieta são invocadas por conta das disputas políticas entre liberais e conservadores, na cidade de Lençóis, no interior da Bahia” (tomo I, p. 28).
Deve-se destacar o fato de Machado ter sido um homem absolutamente ligado à história, à cultura e aos costumes de seu tempo e lugar. Dentre os episódios mais divertidos comentados sob sua ferina pena, estavam os “anúncios amatórios”: “[…] quase sempre publicados no Jornal do Comércio, e misturados à propaganda dos mais variados produtos, compartilham com estes o caráter de mercadoria” (tomo I, p. 40).
A despeito de ser um escritor popular (e amigo de sujeitos poderosos da Corte, àquela altura), o Dr. Semana não resistia, por muito tempo, a escrever sem dar pitacos – inclusive sobre decisões implementadas na esfera pública, com o aval do imperador Pedro II. A título de ilustração, vale a pena mencionar um dos episódios mais ousados, protagonizados pelo cronista. De acordo com Sílvia Azevedo: “[…] a denúncia de que no hospício de D. Pedro II não havia lugar para doidos, que vai aparecer nas Badaladas de 12 de junho de 1870, pode igualmente estar na origem da novela O alienista” (tomo I, p. 47).
No que se refere à elocução dos textos, haveria que se apontar outro elemento fundamental, destacado pela pesquisadora: o fato de Machado, na pele de impiedoso analista, recorrer a expedientes da poesia ao redigir as crônicas. Afora a habilidade em versejar e hibridizar modos e gêneros, o efeito cômico transparecia não apenas devido à escolha do tema e trato dado ao assunto (em geral, rebaixado estilisticamente), mas na discrepância entre o teor da matéria e o modo como ela vinha expressa. Esse expediente chama atenção, mesmo porque foi empregado pelo romancista antes e depois de sua atuação na Semana Ilustrada.
Se o leitor porventura ainda está indeciso em percorrer essas Badaladas, eis algumas amostras do poder de fogo machadiano, que em muito lembram a linguagem ora enfática, ora pachorrenta, de seus caprichosos narradores. Comecemos pelo modo como o cronista zomba do comportamento dos políticos na Câmara: “Cada representante da nação é obrigado a agitar alguma coisa. Uns agitam as questões na tribuna, outros as pernas nos corredores. Os presidentes das câmaras, não podendo agitar questões nem pernas, agitam a campainha” (tomo I, p. 59).
Façamos companhia ao ácido cronista, levando em consideração seu pio argumento: “O leitor, por mais cansado que esteja, há de ir comigo por essas assembleias provinciais fora, a aprender o que é cordura e moderação de linguagem” (tomo I, p. 704). Relembremos a dicção do narrador de O alienista, em sua sanha classificatória: “Minha ideia é organizar uma empresa de seguros das faculdades mentais e das qualidades morais do homem. O leitor, se não é absolutamente idiota, vê já as vantagens deste grande plano, que pode ser aperfeiçoado na prática e no futuro” (tomo II, p. 319).
Afora celebrarmos o feito extraordinário de Sílvia Maria Azevedo, em uma obra que coroa a sua carreira como docente e pesquisadora, seria um truísmo sugerir a amplitude imediata que esta publicação representará para os leitores diletantes, aficionados e, especialmente, os estudiosos concentrados em torno da obra de Machado de Assis. Estamos diante de um autêntico marco das letras e da crítica nacional, levado a termo graças ao trabalho sério, persistente e disciplinado de uma das maiores interlocutoras machadianas de nosso convívio.
* Badaladas do Dr. Semana, de Machado de Assis, tomos I e II, organização, apresentação, notas e índice onomástico por Sílvia Maria Azevedo, São Paulo, Nankin Editorial, 2019, 1.628 pp.
Por Jornal da USP