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‘Essa gente’, de Chico Buarque, é sátira e devaneio para segurar o rojão

RIO — O escritor Duarte percorre as ruas do Leblon com uma sensação de estranhamento: “É como se eu viesse de uma temporada fora (…) e a população tivesse sido substituída por outra, que me torce o nariz como a um imigrante, um pobretão”. Visto como persona non grata por seus vizinhos, o protagonista do sexto romance de Chico Buarque deixa claro que a repulsa é recíproca. Nas anotações do diário que escreve enquanto não consegue avançar com o novo livro, Duarte esquadrinha em tom de sátira os habitantes do metro quadrado mais caro do Rio. Essa gente que lhe torce o nariz é a mesma que aplaude uma execução policial à luz do dia, humilha o porteiro que se esquece de abrir a porta do elevador e, depois de umas doses a mais, acha por bem chutar o morador de rua que ousa dormir encostado ao muro do Country Club.

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“Essa gente” é um livro ácido, que aposta no desafogo do riso e do sexo para não cair no azedume, mas assume um tom agressivo de caricatura, com sentido implícito de ajuste de contas. Nas ironias ficcionais de Duarte, é difícil não ver a resposta satírica de Buarque às ofensas gritadas por alguns de seus vizinhos de bairro e, mais do que isso, ao projeto de Brasil que esses mesmos gritadores presumivelmente ajudaram a levar ao poder.

O próprio Duarte, porém, não escapa ao olhar irônico do romance, cujo título ganha aos poucos sentido mais abrangente. Se de início demarca sobretudo o antagonismo entre o escritor e seus vizinhos, a expressão “essa gente” acaba no decorrer do livro por sugerir também um denominador comum entre os personagens — uma comédia de costumes para a qual todos contribuem com alguma parcela de venalidade e ridículo. Em vez do contraponto melodramático entre o bem e o mal, uma oscilação burlesca entre o péssimo e o menos ruim.

Enquanto não escreve seu novo livro, Duarte se desdobra entre pedidos de dinheiro ao seu editor, Petrus, e encontros com duas ex-mulheres: a tradutora Maria Clara, também copidesque de seus livros anteriores e a quem alguns atribuem seu antigo sucesso; e a decoradora Rosane, hoje noiva de um latifundiário. Um mergulho desastrado no mar do Leblon cria uma outra frente da história, depois que o escritor é salvo de um afogamento por um guarda-vidas morador do Vidigal, Agenor.

Os vários fios narrativos se embolam nos sonhos do escritor em crise, embaralhando preocupações financeiras, convicções políticas e fantasias eróticas com resultados os mais heterodoxos, porém nem por isso implausíveis. A alternância entre vozes e textos de procedência diversa (notícias de jornal, cartas e anotações pessoais se entrelaçam com diálogos por telefone, fluxos de pensamento, relatos de outros personagens à frente da narração) confere ao livro um ritmo entrecortado, que flerta às vezes com o devaneio e parece, por isso mesmo, um método narrativo adequado ao Brasil contemporâneo.

Fazendo daquilo que seria sua história central (o livro que o autor pena para escrever) um não acontecimento, “Essa gente” dispensa a linha reta do enredo tradicional para se construir como uma sequência de vinhetas reveladoras da vida carioca e brasileira, inclusive nos jogos amorosos atravessados por fantasias de poder e fantasmas familiares (escrevendo nessas passagens com a desenvoltura de quem domina o tema, o autor é menos convincente ao detalhar a penúria financeira que aflige Duarte). Sátira abrasiva e devaneio meio estrambótico se combinam em “Essa gente” como duas respostas complementares, e cada uma igualmente necessária, aos tempos que correm: crítica e desafogo para segurar o rojão.

* Miguel Conde é jornalista e Doutor em Letras pela PUC-Rio

Fonte: O Globo

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