Para quem se aventura no mundo dos vinhos, é natural tentar estabelecer uma certa harmonia entre o que comemos e o que bebemos, da mesma forma como fazemos com outras bebidas: não servimos café com leite para acompanhar feijão com arroz e nem cachaça com pudim de leite. Mas esse conhecimento do dia a dia, que é natural para as simples combinações acima, não é tão fácil no mundo do vinho. Porém, ainda assim é algo que uma pequena experimentação resolve.
Conhecer para dominar
Quando falamos de combinação de sabores, é importante pensar um pouco a respeito de nossos pratos favoritos, tanto aqueles que preparamos cotidianamente quanto aqueles que fazemos em ocasiões especiais. Quais são as nossas preferências? Carnes, peixes, massas, doces com frutas ou com creme, doces com chocolate, cada um deles tem sua força em um ponto: sal, açúcar, gordura, texturas; e tudo isso vai influenciar na escolha do vinho.
Da mesma forma que com os pratos, para harmonizar é preciso conhecer um pouco sobre alguns estilos de vinhos e suas uvas, ler os rótulos com atenção, pesquisar e degustar (essa, em geral, é a melhor parte). Isso também quer dizer que não devemos nos ater sempre ao mesmo tipo de vinho, pois isso limita nossas opções de combinação (e de conhecimento, claro).
Em geral, os vinhos tintos, por conta dos taninos (composto presente na casca e na semente da uva) são mais intensos, mas não necessariamente mais pesados. Existem vinhos tintos bastante delicados e frutados, como por exemplo os Beaujolais Nouveau, da França, feitos com a uva Gamay, que de tão jovens o ideal é que sejam bebidos em até um ano de sua produção. No outro extremo dos tintos estão, por exemplo, os vinhos da região do Piemonte italiano, feitos com a uva Nebbiolo, e que, geralmente, precisam de anos (até décadas) para atingir seu auge. E quando em seu ponto alto (no caso dos Barolos), são vinhos intensos e ao mesmo tempo muito complexos.
Já entre os brancos, as principais características para harmonização são os aromas (existem uvas brancas chamadas aromáticas e também as nãoaromáticas), a presença de madeira (alguns brancos passam um tempo em madeira, quando ganham profundidade) e sua acidez. Os vinhos brancos são muito versáteis e podem acompanhar desde o aperitivo até a sobremesa, coisa muito mais difícil para os tintos.
Todo baralho tem um curinga
Vinhos brancos geralmente são ideais para acompanhar peixes e frutos do mar
Os espumantes, principalmente os Brut (secos), são os curingas da harmonização. Os brancos de método tradicional (cuja segunda fermentação ocorre na própria garrafa) combinam com pratos mais complexos, com molhos e acompanhamentos elaborados, enquanto os de método Charmat (cuja segunda fermentação é feita em tanques de inox) são mais frutados e leves, ideais para aperitivos e saladas. Há ainda a possibilidade de combinar com alguns rosés secos que, por terem uma ligeira carga de taninos, vão bem com carnes grelhadas.
Nos espumantes, a combinação de aromas e acidez facilita a harmonização com muitos pratos e, se acrescentarmos os Moscatéis, até mesmo os bolos com frutas e creme serão bem acompanhados. Existem enófilos especialistas em harmonização que chegam a afirmar que o espumante Brut é o único vinho capaz de fazer frente à brasileiríssima feijoada, incluindo aí até mesmo os Lambruscos secos de boa qualidade.
No entanto, muitas pessoas ainda acham estranho beber espumante durante toda a refeição, por acharem que é uma bebida que “sobe” muito. Isso não é verdade. O conteúdo alcoólico dos espumantes é, em geral, mais baixo que o da grande maioria dos tintos e de muitos brancos, ficando ao redor de 12% do volume. A percepção das pessoas, por outro lado, não é irreal. O que acontece é que a presença de gás carbônico na bebida facilita a entrada do álcool na corrente sanguínea, e os sinais aparecem mais rapidamente do que com outros vinhos.
Já os Moscatéis espumantes têm, normalmente, menos álcool (em torno de 8%), mas contêm mais açúcar residual, o que diminui sua possibilidade de harmonização, afinal não se começa uma refeição com os doces.
Tintos versáteis
Os vinhos brancos são, infelizmente, menos apreciados pelos brasileiros do que suas possibilidades enogastronômicas dão a conhecer. Perfeitos para acompanhar os peixes e frutos do mar (principalmente os de preparações mais simples), como é de conhecimento geral, eles também fazem bonito com as carnes brancas como frango, peru ou até mesmo o lombo de porco. O sommelier Ney Freitas, do restaurante Barbacoa em São Paulo, reforça que, mesmo na churrascaria onde trabalha, os brancos têm espaço: “Brancos aromáticos, como os da uva Gewürztraminer ou Viognier, por exemplo, vão muito bem com carnes leves temperadas e é claro que não podemos esquecer da combinação maravilhosa de ostras com o Sauvignon Blanc ou de massas ou carnes com molho branco com um Chardonnay amadeirado”, explica.
Já o churrasco do final de semana pode começar bem com um Merlot mais leve, com pouca passagem por madeira, se a escolha forem as carnes na brasa sem muita gordura. Ney explica que um pouco de madeira nesses vinhos vai combinar perfeitamente com o toque defumado, esfumaçado do churrasco. Mas quando as carnes tiverem mais gordura, o vinho precisará ter mais corpo e taninos: “Daí vale a pena escolher um vinho italiano da uva Sangiovese ou uma combinação de uvas ou um francês simples da região de Bordeaux, que vai casar muito bem com o mix de carnes em geral servida no churrasco caseiro”, revela o sommelier, completando que, caso as carnes sejam bastante gordurosas, como a picanha, a costela de vaca ou o cupim, vale tentar um Tannat, com seus taninos potentes que limpam parte da gordura do palato.
Para o dia a dia, no entanto, pode-se escolher vinhos da uva Syrah do Novo Mundo (Austrália, Chile, Argentina, Brasil etc), com suas frutas negras e especiarias para combinar com pratos vegetarianos, com carnes assadas e molhos; ou Cabernet Sauvignon não muito envelhecidos para escoltar massas com molhos vermelhos (aqui também cabem alguns Chardonnay, numa combinação ousada e feliz), e Carménères chilenos simples para a pizza. Vinhos portugueses com misturas de várias uvas típicas podem ser maravilhosos com cozidos e assados, além, é claro do bacalhau e da carne de porco bem temperada.
Como a harmonização é uma experiência sensorial complexa, é preciso prestar atenção às combinações que fazemos não apenas em ocasiões especiais, mas também para valorizar o dia a dia sem gastar muito e sem abdicar do prazer de um bom vinho.