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“Para entender a poesia de Gregório de Matos, é preciso saber quem foi ele”. Assista.

Por Claudia Costa

Poemas Escolhidos, de Gregório de Matos – ao lado de Angústia, de Graciliano Ramos, e Quincas Borba, de Machado de Assis -, passa a integrar neste ano a lista de livros obrigatórios do vestibular da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) – que dá acesso aos cursos da USP -, substituindo Iracema, de José de Alencar. Historicamente o primeiro grande poeta do Brasil, do período Barroco, Gregório de Matos Guerra nasceu em 1633, na cidade de Salvador, na Bahia, e sua obra, principalmente a satírica, faz alusão a duas de suas maiores referências: Brasil e Portugal. “Para entender a obra do autor, é preciso, primeiro, saber quem foi Gregório de Matos Guerra”, afirma o ensaísta e crítico literário João Adolfo Hansen, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e autor de A Sátira e o Engenho, considerado o mais completo estudo sobre Gregório de Matos e a Bahia do século 17.

O poeta Gregório de Matos é conhecido por suas poesias satíricas e eróticas, o que lhe rendeu o apelido de “Boca do Inferno” – Foto: Academia Brasileira de Letras

Filho de um fidalgo português que se tornou senhor de engenho no Recôncavo Baiano com uma brasileira, Gregório de Matos se formou em Direito na Universidade de Coimbra, Portugal. “Único local em que se pode ver sua assinatura, no livro de matrículas”, informa Hansen. Embora não se saiba muito sobre sua vida, acredita-se que ele tenha chegado a trabalhar como juiz na cidade de Alcácer do Sal, em Portugal. “Nesse tempo, tinha um hábito que divertia as pessoas. Ele ditava as sentenças dos processos em versos, geralmente indecentes e pornográficos. Mas é preciso levar em conta a moral aristocrática do século 17 e a moral burguesa de hoje”, diz o professor.

Em 1682, foi nomeado pelo rei português para ocupar um cargo eclesiástico em uma igreja de Salvador, mas, ao descobrir que precisaria fazer voto de castidade, desistiu. Abriu uma banca de advogado em Salvador e casou-se com Dona Maria dos Povos, com quem teve um filho, Gonçalo. Nessa fase passou a escrever cada vez mais poesias satíricas e eróticas, onde expõe sem nenhum pudor a sociedade da época, o que lhe rendeu o apelido “Boca do Inferno”. Segundo o professor, esse nome tinha um duplo sentido, porque saíam de sua boca tanto a obscenidade quanto os pecados da humanidade. Não se sabe também por que, em 1685, foi degredado para Angola e, de volta ao Brasil, em 1696, fixa-se em Recife, onde morre em 26 de novembro daquele ano.

Segundo Hansen, há vários Gregórios, dependendo do foco das leituras, como o que viveu no século 17 e o que ficou famoso postumamente. “Às vezes, a fama de poeta pornográfico, crítico e satírico é muito maior do que o próprio exame da poesia que se atribui a ele”, comenta. Até hoje, Gregório de Matos é tido como poeta libertário, com uma obra subversiva, mas, para Hansen, quando se examina o contexto do século 17, percebe-se que é extremamente convencional.

“É preciso analisar que Gregório de Matos Guerra viveu em uma sociedade não burguesa e não democrática, e que a sátira é um ataque de vícios e viciosos, muito comum naquela época”, explica. Outra questão é acerca da atribuição dos poemas – no período colonial era corriqueiro atribuir obras a alguém famoso, diferente dos tempos atuais, em que o nome garante direitos autorais e de propriedade privada sobre a obra. “Muitas vezes o poema é anônimo e atribuído ao poeta Gregório de Matos, que não era um nome propriamente, mas a classificação de um gênero, a sátira”, completa.

“Essa poesia tem um valor poético, de padrões artísticos do século 17, e simultaneamente põe em cena valores da sociedade portuguesa antiga, que são transformados nos trópicos, na colonização do Brasil, incluindo temas locais. Nesse sentido, tem um valor histórico porque traz várias referências”, diz o professor. “Gregório de Matos foi lido e transformado desde o século 19, quando o cônego carioca Januário da Cunha Barbosa publicou dois de seus poemas, até o Tropicalismo de Caetano Veloso, em que o poeta se torna uma espécie de baiano tropicalista”, relata o professor.

No auge da ditadura militar, um general mandou apreender mil coleções (7 mil livros) dos poemas de Gregório de Matos para queimar em praça pública, mas acabou voltando atrás, o que acabou lhe rendendo a fama de ‘poeta maldito’.”

Gregório de Matos não publicou nada em vida, de forma impressa. No século 17, a leitura era proibida – muitos eram os iletrados – e o livro circulava como um objeto raríssimo e caro, com folhas feitas de trapo (pano). “Era comum o poema ser composto nessa folha, e na sátira, por exemplo, era extremamente rotineiro alguém escrever à noite e, de madrugada, aquela folha ser pregada com cola de farinha de mandioca na porta da igreja. Alguém que sabia ler declamava em voz alta e, como eram facilmente memorizáveis, os versos eram utilizados para a produção de novos poemas”, conta Hansen.

Na época, como lembra o professor, isso produziu uma grande quantidade de poemas circulando na oralidade e na memória, que necessariamente não eram escritos. “Mas, quando eram escritos, o letrado copiava nessa folha de papel, de tamanho variado, pequenos ou grandes, ou ainda usava folhas que já tinham sido escritas – eles raspavam com pedra pome e reescreviam”, explica Hansen, relatando ainda que havia o hábito de colecionarem essas folhas, que eram costuradas, formando cadernos, chamados de códices.

O professor cita o códice pertencente a Manuel Pereira Rabelo, um letrado do século 18, que deu origem à antologia da poesia de Gregório de Matos, publicada em sete volumes, em 1968, por James Amado (irmão de Jorge Amado), em parceria com a professora baiana Maria da Conceição Paranhos. “No auge da ditadura militar, um general mandou apreender mil coleções (7 mil livros), para queimar em praça pública, mas, advertido por um intelectual da Bahia de que os militares, além de fascistas, seriam também considerados nazistas, acabou voltando atrás. Isso produziu uma certa fama do Gregório como ‘poeta maldito’”.

O Códice Rabelo é, provavelmente, como diz o professor, a fonte para o livro que passa a integrar o vestibular de 2020 da Fuvest, Poemas Escolhidos. A clássica coletânea foi preparada nos anos 70 pelo professor José Miguel Wisnik, também da FFLCH, e ganhou nova edição revista pelo organizador. Editada pela Companhia das Letras, a seleção traz os melhores poemas de Gregório de Matos nas diversas modalidades, incluindo notas de esclarecimento, um pequeno perfil biográfico do poeta e uma análise crítica de sua obra.

Um dos cinco volumes que o professor João Adolfo Hansen e seu orientando Marcelo Moreira publicaram em 2013, com a transcrição dos códices de Gregório de Matos encontrados na biblioteca da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Foto: Cecília Bastos – Arquivo USP Imagens

Em 2013, Hansen e seu então orientando Marcelo Moreira publicaram, pela Editora Autêntica, cinco volumes de cerca de 500 páginas com os manuscritos de Gregório de Matos – quatro deles com a transcrição da poesia e o quinto com um estudo dos critérios históricos de definição dessa poesia. O professor conta que os códices pertenciam ao espanhol Eugenio Asensio, que os deu de presente ao gramático carioca Celso Cunha, e que foram doados, depois de sua morte, pela família à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foram localizados na biblioteca da universidade, na Ilha do Fundão.

O poeta manda tudo que é vício e vicioso para o inferno. Ele sempre deseja o pior para a sociedade, que naquela época já era desigual, e continua sendo ainda hoje, embora se diga democrática.”

Poemas Escolhidos, de Gregório de Matos, com seleção e prefácio de José Miguel Wisnik, livro que entra na lista de leitura obrigatória para o vestibular de  2020 da Fuvest – Foto: Reprodução

Tido como poeta do Barroco – apesar do conceito ser instituído somente no século 20 para definir um período do século 17, como alerta o professor para os vestibulandos –, Gregório de Matos passeava por dois tipos de poesia: lírica e satírica. O primeiro, como explica Hansen, tem formas italianas, com sonetos de 14 versos, e possui uma lírica amorosa ou religiosa. “A lírica amorosa surge através da declaração de amor de um homem para uma dama, e traz a descrição da beleza da mulher, imitando formas de outros poetas nesse gênero, como Camões, Góngora, Quevedo e Petrarca.” Já a poesia lírica religiosa “é um elogio aos santos da Igreja Católica, como a Virgem Maria, que salva o poeta do pecado, e de Jesus Cristo, mas, principalmente, seu sofrimento na cruz”, comenta Hansen.

“Esse corpus poético também tem muita poesia cômica na variante da sátira”, ressalta, explicando que a sátira de Gregório de Matos evidencia a referência a dois poetas romanos: Horácio (século 1 a.C.), quando se trata do ridículo, a partir de brincadeiras e jogos de palavras, e Juvenal (século 1 da era cristã), que se refere a vícios, agressões, obscenidades e até pornografia. Essa última, segundo Hansen, trata dos pecados mortais, como a luxúria, a gula, a corrupção, sempre com a ideia de sarcasmo.

“Excremento é uma palavra referida o tempo todo. O poeta manda tudo que é vício e vicioso para o inferno. Ele sempre deseja o pior para a sociedade, que naquela época já era desigual, e continua sendo ainda hoje, embora se diga democrática.” Mas é uma “poesia que provavelmente não vai ser pedida no vestibular,  porque seria considerada indecente e seria censurada”, brinca o professor, lembrando o fato ocorrido na última Bienal do Rio de Janeiro, em setembro passado, quando a Prefeitura entrou na Justiça para recolher uma revista em quadrinhos que exibia dois personagens masculinos se beijando.

Jornal da USP

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