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Nobel de Literatura, Peter Handke tem dois bons livros lançados no Brasil

Em 2 de agosto de 1914, Franz Kafka anotou em seu diário: “Hoje, a Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar.”

A tirada do grande autor tcheco resume o duplo dilema dos espíritos contemplativos, mas conscienciosos. Até que ponto deveríamos permitir que os eventos históricos ofusquem nossa relação com as banalidades essenciais do quotidiano? Ou, inversamente, até onde podemos nos alhear à História, assim maiúscula, sem incorrermos em algum tipo de arriscada metamorfose? A passagem poderia servir de epígrafe à série de textos ensaísticos que o austríaco Peter Handke começou a escrever com “Ensaio sobre o cansaço”, de 1989 — e que inclui, também, dois títulos recém-lançados pela Estação Liberdade, em excelentes traduções: “Ensaio sobre a jukebox”, de 1990, e “Ensaio sobre o louco por cogumelos”, de 2013.

Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2019, honraria que veio acompanhada de protestos por ele ter apoiado o regime genocida do sérvio Slobodan Milosevic, Handke talvez seja mais conhecido no Brasil como o roteirista de “Asas do desejo” (1987), de Wim Wenders. Os apreciadores do filme haverão de reconhecer o estilo do roteirista nas páginas do prosador. Handke é dono de uma escrita ao mesmo tempo febril e fleumática, sem grandiloquências, mas carregada daquilo que Drummond chamou, famosamente, de “sentimento do mundo”.

Ensaio sobre a jukebox” (traduzido por Luis S. Krausz) é um relato delicioso — verídico ou imaginário? — sobre um escritor “que há muito tempo não é jovem” e cuja obsessão é historiar o charmoso e obsoleto artefato que dá nome ao livro: aquelas caixas de música acionadas por moedas que tantas vezes comparecem em filmes de época. A jukebox— aprendemos no “Ensaio” — surgiu na década de 1920, nos Estados Unidos, durante a Lei Seca. Nos bares clandestinos, instalaram-se pela primeira vez caixas de música automáticas, que logo ganharam seu misterioso apelido — talvez baseado na gíria “to jook”, que significa “dançar”. Também é possível que a palavra jukebox seja uma referência às plantações de juta, cujos trabalhadores eram, majoritariamente, negros. Os colhedores de juta reuniam-se em bares conhecidos como jute points ou juke points, onde, em troca de um níquel, escutavam canções de Billie Holiday ou Louis Armstrong.

“Ensaio sobre a Jukebox”. Autor: Peter Handke. Tradução: Luis S. Krausz. Editora: Estação Liberdade. Páginas: 112. Preço: R$ 38. Cotação: Bom.

Como se vê, a jukebox é realmente um assunto fascinante. A estranheza central no texto de Handke reside no fato de que o personagem-narrador tenha abandonado todos os seu afazeres para se dedicar a um assunto tão colateral aos grandes eventos do mundo. Nesse sentido, é crucial notar que o ensaio-relato se desenrola em 1989, simultaneamente à queda do Muro de Berlim. Nesse momento em que “todo dia é uma data histórica”, o protagonista se entrega a um tema “para gente que foge do mundo”, extraviando-se numa jornada que pode ser vista como a busca pela introversão perfeita, ou como um gradual apagamento de si mesmo.

Semelhante inquietação preside o “Ensaio sobre o louco por cogumelos” (traduzido por Augusto Rodrigues). Nele, o narrador discorre sobre um amigo de infância, que, quando menino, costumava catar zelosamente cogumelos, para vendê-los nas vizinhanças. Décadas mais tarde, já bem situado na vida, vê renascer a antiga obsessão ao se deparar com um magnífico champignon, durante um passeio pela floresta — e a partir daí sua vida se desintegra numa espiral de loucura, à medida que o fanatismo dos fungos vai lhe consumindo todo o tempo e todas as energias.

Livro 'Ensaio sobre a jukebox', de Peter Handke Foto: Reprodução
Livro ‘Ensaio sobre a jukebox’, de Peter Handke Foto: Reprodução

“Ensaio sobre o louco por cogumelos”.Autor: Peter Handke. Tradução: Augusto Rodrigues. Editora: Estação Liberdade. Páginas: 160. Preço: R$ 44. Cotação: Bom.

Em um parágrafo memorável, o narrador de “Ensaio sobre o louco por cogumelos” confessa seu preconceito contra os grandes protagonistas dos eventos históricos: “todos os seres incessantemente ativos no interesse da universalidade, se não da Humanidade, estariam mais bem colocados exercendo algumas nulidades como a prega de botões, a coleta de chamiços ou mesmo o deitar-de-corpo indolente, de modo que ao menos não causassem nenhuma desgraça”. A insignificância, parece nos dizer Handke, é uma forma de inocência, e a obsessão por coisas insignificantes é uma forma da transcender a loucura da História. Mas, fugindo de uma loucura, pode-se facilmente cair em outra. Por isso, entre níqueis e champignons, o texto de Handke nos deixa um sabor de fatalidade cômica: quando não há solução para os nosso dilemas, resta um sorriso ao fim do jantar, enquanto se escuta uma velha canção, numa velha caixa de música.

Por O Globo

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