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Na África do Sul, cultura foi um importante mecanismo de combate ao Apartheid

O Apartheid, política de segregação imposta pela população branca da África do Sul entre os anos de 1948 até 1994, teve como principal figura de resistência Nelson Mandela, que foi forte opositor do regime. A pesquisa de doutorado de Núbia Aguilar Ribeiro busca aprofundar-se na complexidade da resistência por parte da população negra. O trabalho afasta-se da luta partidária — encabeçada por Nelson Mandela — e revela a resistência por meio da cultura, representada na pesquisa pela revista The African Drum

O trabalho A música como mecanismo de resistência no Apartheid analisa os dez primeiros anos da política de segregação institucionalizada. Orientada pela professora Maria Cristina Cortez Wissenbach, a pesquisa é da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A pesquisa de doutorado ainda está em andamento. 

“Nós precisamos pensar em outros agentes históricos. Apesar da importantíssima luta política, existiam outros sujeitos lutando no cotidiano contra as formas de repressão. É isso que a revista mostra”, diz Núbia ao Jornal da USP. A The African Drum — ou apenas Drum — era composta de jornalistas, editores e fotógrafos negros. As publicações começaram em março de 1951 até o ano de 1984. Entretanto, as matérias críticas ao regime foram publicadas entre os anos de 1951 a 1958. Ela valoriza a estética negra indo na contramão do discurso predominante que dizia que essa estética não deveria ser valorizada.

“A revista me ajudou a entender que o Apartheid foi um sistema dinâmico aperfeiçoado ao longo do tempo e é muito mais complexo do que as definições rápidas que encontramos. As dinâmicas são muito mais fluidas, existem muito mais histórias até mesmo quando a gente pensa no que seria uma resistência e quem seriam os opositores do regime”, explica Núbia.

A revista

A revista Drum nasce na Cidade do Cabo, na África do Sul, como um projeto de brancos que intencionava publicar textos sobre as populações tradicionais da região, falar sobre rituais, casamentos, etc. No mesmo ano de sua fundação a revista começa a atuar  em Johannesburgo (África do Sul). No século 19foram descobertos minérios em Johannesburgo, o que culmina na chegada de grande número de pessoas, de outras cidades ou até países, à cidade. Isso resulta no contato entre pessoas de diferentes nacionalidades, com diferentes costumes e gera uma dinâmica cultural muito rica na região. 

Quando a revista chega a Johannesburgo, se depara com uma vida urbana e cultural muito diferente da Cidade do Cabo e passa a retratar isso. Começa a ter espaço para a cultura urbana. E é a partir desses acontecimentos que ela começa a apresentar o viés da resistência.

A Drum usava a cultura para resistir ao Apartheid e dentro disso havia indícios críticos de viés político. Um exemplo que a pesquisadora traz é o de Miriam Makeba, cantora sul-africana que gravou a música Khawuleza, sobre as batidas policiais na casa de mulheres negras. Na época, era comum que homens trabalhassem fora e que as mulheres ficassem em casa e, como fonte de renda extra, elas produziam cerveja artesanal, o que era ilegal. Os policiais faziam buscas violentas em suas casas. A casa da mãe de Miriam foi alvo de uma dessas buscas.

A representação da opressão está na revista porque, no momento em que a música cantada por Miriam é colocada nas páginas, as pessoas se identificam. “Em um regime de opressão as experiências coletivas são comuns. Não tem como as autoridades proibirem uma pessoa de cantar”, conta Núbia. 

Miriam cantava músicas tradicionais na linguagem usada pela população negra, assim como muitos outros artistas que estrelaram as edições. As pessoas encontravam naquelas páginas acontecimentos presentes em suas vidas. A violência policial também tinha destaque, os repórteres que passavam por isso encontravam espaço para relatar suas experiências. “Eram pessoas negras sofrendo a opressão e falando sobre ela direta e indiretamente”, explica a pesquisadora.

As edições chegavam a mais de 40 mil cópias mensais com 50 páginas, em média. É difícil mapear quem eram os leitores. O que se sabe é que a revista representava a população negra e teve uma demanda crescente. Então o próprio crescimento do número de edições indica quem consumia a revista.

A repressão

O viés crítico permaneceu na linha editorial da revista de 1951 até 1958, quando muitos jornalistas começaram a ser perseguidos e um deles foi assassinado. 

A opressão começa a ser sentida entre os responsáveis pelas publicações e, então, o modo de trabalhar as matérias muda e o viés político de resistência desaparece. Os assuntos das matérias começam a ser moda, esporte, vida doméstica e afins.

Complexidade das dinâmicas sociais

“O Apartheid foi um sistema muito complexo e não foi um momento fechado, foi se aperfeiçoando ao longo do tempo, com as leis e comportamentos”, ressalta a pesquisadora. Ela diz ainda que pensar nessas dinâmicas é possibilitar que novos sujeitos históricos ativos na resistência apareçam. “Se olharmos apenas para a luta político-partidária acabamos apagando sujeitos que lutaram no cotidiano e esquecemos de grupos importantes.”

A revista canalizou os processos de endurecimento da segregação e como os indivíduos reagiram a isso no dia a dia e permitiu o contato com outras narrativas sobre o momento histórico. Assim é possível olhar para o Apartheid como algo muito mais complexo do que apenas um regime de segregação entre brancos e negros. 

A pesquisa lança olhar para as pessoas que viviam nesse momento e como era a experiência. “Quando pensamos em um sistema tão abrangente, existem as características gerais mas temos acontecimentos mais particulares. Por exemplo, a experiência de homens pode ter sido diferente das mulheres, ou as de adultos diferentes das crianças e assim por diante”, conclui Núbia.

Por Jornal da USP

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