“Que fumaça é essa?” foi a pergunta que fizeram todas as pessoas que dormiam em uma oca no meio do Xingu ao acordarem na madrugada do último dia 20 de agosto com a sensação de que a casa havia se transformado em uma coifa de churrasqueira. “Tem muito acampamento aqui em volta. Devem ser as fogueiras deles”, respondeu Valter Mehinako, o proprietário, tentando acalmar os cerca de 20 hóspedes de sono leve, pouco acostumados a dormir em ocas. Somente dois dias depois, vencidas as quatro horas de barco e cinco de estrada de terra e asfalto que levavam à primeira cidade com sinal 3G, seríamos bombardeados com notícias que mostravam a Amazônia pegando fogo.
Para entender o que a GQ estava fazendo no Xingu nos dias em que o mundo se atentou às queimadas na floresta amazônica, vamos voltar no tempo. Na última GQ Style, contamos a história da Ginga.Fc, marca de moda sustentável que cria peças inspiradas nas suas experiências em aldeias indígenas que visitam frequentemente para revitalizar campinhos de futebol. Topamos acompanhar de perto uma dessas visitas, com direito a um atrativo especial: estaríamos no Xingu enquanto aconteceria um Kuarup, o ritual indígena de homenagem aos mortos.
O mito que conta a origem do Kuarup narra a história de um deus que tentou trazer de volta seus entes falecidos. Na versão moderna, a aldeia se reúne para lamentar a perda de um membro importante da comunidade em volta de um tronco cortado, pintado e enfeitado com os adereços que ele usava em vida, com direito a muito choro, cantoria, lutas, peixe e beiju (tapioca que é a base da alimentação).
O Kuarup não tem frequência determinada, cada etnia decide quando vai realizar o seu. Assim, fomos à aldeia Uyapiyuku, dos Mehinako, homenagear duas senhoras que lá viveram. Nossos anfitriões vivem à beira do rio Kurisevo, onde levamos cerca de 20 horas para chegar – entre avião até Goiânia, ônibus até Canarana-MT, van até Gaúcha do Norte (MT), 4×4 até a beira do rio e barco até a aldeia.
Como parte importante do Kuarup é convidar as aldeias vizinhas para o ritual, não éramos os únicos vindos de fora. Conosco, começaram a chegar também os índios Kalapalo, Kuikuro, Waruá, Yawalapiti e Kamayurá. Por isso, uma das principais preocupações dos Mehinako foi garantir comida para todos com uma grande pesca coletiva. Espalhados em uma lagoa, desviando das arraias e piranhas, cerca de 50 homens arrastaram uma rede por três horas para garantir um pouco mais de 1500 peixes – comida suficiente para os cerca de 900 convidados.
Em volta da aldeia, os visitantes montam suas redes no meio das árvores. Como estamos na transição entre o cerrado e a floresta, a terra é muito seca e as árvores não são tão altas, então os próprios índios usam uma queimada controlada para esse tipo de trabalho – no Xingu, ela é ao mesmo tempo ameaça e ferramenta. “Fazemos a nossa porque temos medo das outras, assim queimamos uma área pequena para evitar que, quando tenha uma queimada de fora, ela chegue até aqui”, explica Mayawari Mehinako, líder local.
Antes da fumaça subir, contudo, a festa tomou forma. As atividades começam quando garotas reclusas por cerca de um ano (após a primeira menstruação) são apresentadas, agora como adultas, por dois tocadores de flautas, em uma espécie de cortejo. Dois índios mais velhos entoam mantras diante dos troncos enfeitados e colocados no centro da aldeia, enquanto os demais dançam no ritmo de um canto de guerra em linhas e círculos. Trata-se de uma apresentação, mas eles estão prontos para a Huka Huka, espécie de luta que lembra a greco-romana com toques de sumô. O objetivo é segurar a perna do oponente e derrubá-lo no chão. Cada etnia tem seus campeões, que lutam entre si. Depois, abre-se um círculo em que qualquer homem pode lutar. O clima é de disputa e diversão. Os caciques acompanham tudo de perto e vão guardando na memória os vencedores já pensando na próxima convocação. Há luta sempre que há festival.
O que separa a preparação das lutas de fato, que se iniciam ao primeiro raio de sol do dia do Kuarup, é a noite do festival. Ninguém dorme, e os índios se revezam em posições ao redor dos troncos para chorar e cantar em homenagem aos mortos. Durante a madrugada, era possível ver manchas laranjas no céu negro em quase todos os sentidos do horizonte, o que nos deixava um pouco preocupados e, aos Mehinako, confusos. “É muita fogueira”, diziam alguns. Por volta das 3h da manhã, a sensação era mesmo de estar em um churrasco.
Isso tem explicação. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de 1º de janeiro até aquela terça-feira foram contabilizados 74.155 focos de incêndio na região amazônica, uma alta de 84% em relação ao mesmo período do ano passado – e o número mais alto desde que os registros começaram, em 2013. Sem internet, ninguém na aldeia Uyapiyuku sabia disso, mas sua localização permite arriscar que vimos bem de perto o fogo que vem ardendo na Amazônia e no cerrado. Apesar disso, outro Kuarup, dessa vez em uma aldeia Kalapalo, aconteceu poucos dias depois, quando já estávamos de volta a São Paulo. O Kuarup define a cultura indígena assim como o fogo define onde ela acaba e começa a nossa ideia de civilização.
Américo Piacenza, chef // @americopiacenza
“Passei três noites no Xingu, na tribo dos Waurás, durante o Kuarup. Foi maravilhoso comer a comida deles, dormir em redes dentro das ocas, tomar banho de rio, buscar lenha, assistir a seus rituais e, claro, cozinhar para a tribo, levando um pouco de nosso queijo, de linguiça, feijão, doce de leite e até panelas.
Os Waurás são de uma época em que tudo era dividido, todo mundo era importante, era igual, tudo era de todos. A única garantia que eles têm é que, se alguém tiver comida na aldeia, ela será dividida. Isso gera segurança, acaba com a ansiedade da falta. O espírito de união, de fazer parte, de cuidar uns dos outros garante a continuidade da tribo. Os indígenas nos ensinam valores que estão sendo esquecidos: a partilha, a vida mais calma, a contemplação, o respeito à natureza. A enxergar o outro como igual, a superar nossas diferenças. Afinal, vivemos em abundância. Se dividir, sempre vai ter pra todo mundo.
Os Waurás não precisam de nossa ajuda, de nossa tecnologia, de nossa higiene. Temos que deixá-los em paz para preservar uma cultura desvinculada do capital e, por isso, livre da angústia que traz o dinheiro.”
Maria Raduan, cineasta // @mariaraduan
“Fui umas 100 vezes para o Xingu, em Kuarups ou fora deles. Minha mãe era muito amiga do Orlando Villas-Bôas, então estive lá algumas vezes ainda quando criança, depois mais outras adolescente e mais ainda adulta. Quando o Claudio Villas-Bôas [indigenista que demarcou os povos do Xingu com os irmãos, Orlando e Leonardo] morreu, fui no Kuarup feito para ele. Quando o Orlando morreu, fui também em seu Kuarup (o maior já feito). Então dá pra ter uma ideia de quantas vezes já estive lá. A última faz uns dois anos, quando levei meu filho, que na época tinha nove anos de idade – foi a primeira vez dele. É um universo bem íntimo para mim. Não tanto no sentido da intimidade, mas porque conheço muito bem aquilo tudo – e há muito tempo. Acompanhei todas as mudanças que aconteceram ali ao longo do tempo.”
Por Felipe Blumen