Em finais da década de 1990, os registros teatrais guardados pelo Departamento de Artes Cênicas (CAC) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP eram reduzidos, sendo destaque o acervo doado pelo Professor Emérito Clóvis Garcia — um dos fundadores daquele departamento, que morreu em 2012. Foi somente em 2004, quando a professora Elizabeth Ferreira Cardoso Ribeiro Azevedo, do CAC, assumiu a organização daquele material, que se deu início ao que se transformaria no atual Centro de Documentação Teatral (CDT).
De início, Elizabeth se dedicou a reorganizar aquela documentação. Com o tempo e com a ajuda de outros docentes, sobretudo do professor Fausto Viana, passou a receber novos materiais no então chamado Laboratório de Informações e Memória (LIM) do Departamento de Artes Cênicas.
Na visão da professora, o mais importante ao longo desse processo foi a perspectiva do Centro de Documentação Teatral de assumir um papel de importância na preservação do acervo da cidade e, portanto, do País. “A cidade de São Paulo, principalmente depois da metade do século 20, tem um teatro altamente moderno e dinâmico, e muito desse acervo ainda está em perigo de desaparecer. Acho que a missão de preservar essa documentação é a razão de ser desse centro de documentação”, reflete a professora.
Hoje, o CDT abriga acervos de figuras importantes da história do teatro paulista e brasileiro como um todo. Dentre eles, o da crítica de teatro, diretora e professora Bárbara Heliodora (1923-2015), o da atriz e produtora Ruth Escobar (1935-2017) e o do ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006). “A confiança que os artistas brasileiros estão tendo no CDT me deixa muito contente”, diz o professor Ferdinando Martins, do Departamento de Comunicações e Artes (CCA) da ECA, atual coordenador do centro.
Martins assumiu a coordenação do CDT neste ano, após a aposentadoria de Elizabeth, que é agora vice-coordenadora do centro. Ele ressalta o mérito do trabalho da professora, que “transformou um centro de memória de um departamento em uma coisa hoje gigantesca, que desconfiamos ser o maior centro de documentação teatral do Brasil”.
O trabalho de encontrar espaço físico para os acervos, conseguir materiais e bases de dados em busca de melhorar as condições de conservação levou tempo. “Entre 2012 e 2013 demos um passo importante a partir de um edital interno para o cuidado dos acervos da Universidade, que é um dos maiores centros de acervos de todo tipo, de todas as áreas”, explica Elizabeth. “Fomos contemplados em uma categoria que nos permitiu criar uma base de dados on-line e ter um espaço grande no provedor, o que é uma parte vital do centro de documentação, onde os pesquisadores podem se informar e consultar.”
Ao longo dos anos, novos materiais foram recebidos, à medida que o CDT se tornava conhecido dentro da própria USP. Paralelamente, alunos bolsistas da Universidade tiveram participação no centro, vindos da ECA e de outros institutos, como a FFLCH. Pesquisas foram sendo realizadas a partir do acervo, ao passo que a organização e disponibilização do material era aperfeiçoada. Em termos de espaço, o CDT está agora passando a ocupar uma parte significativa do antigo prédio do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – hoje instalado no Complexo Brasiliana -, na Cidade Universitária, em São Paulo.
Dentre os trabalhos atualmente desenvolvidos pelo CDT, Martins destaca o projeto Documentação e Inserção de Acervos de Som, Música e Sonoplastia no Sistema de Gerenciamento de Acervos (SGA) do LIM-CAC, contemplado neste ano por um edital da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, em parceria com a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp) e com o Banco Santander. “Começamos com o acervo de Maria Antonia Ferreira Teixeira – conhecida como Tunica Teixeira -, uma sonoplasta brasileira que trabalhou com espetáculos bastante importantes”, diz Martins. É a primeira vez que o CDT faz a catalogação de um material sonoro, envolvendo discos, CDs, DVDs e partituras.
A professora Elizabeth ressalta a importância da guarda de materiais nesses e em outros formatos, por vezes menos valorizados. “Não podemos pensar o teatro só como do autor, do dramaturgo, ou dos autores. Temos os diretores, os criadores de cenografia, de figurino, de som, de luz. O teatro é uma expressão coletiva, inclusive do público”, pensa.
Outro projeto é o Raros e Inéditos: Digitalização da Dramaturgia Brasileira do Século XIX, contemplado pela Pró-Reitoria de Pesquisa da USP via Edital de Apoio a Projetos Integrados de Pesquisa em Áreas Estratégicas (Pipae). “Buscamos digitalizar e disponibilizar peças que nunca vieram à luz, ou seja, peças que os dramaturgos escreveram e que ficaram na gaveta, o que inclui, por exemplo, peças que são manuscritas”, diz Martins. “Quando nos candidatamos ao edital, nós nos propusemos a fazer a digitalização de 50 peças dessa natureza. O projeto tem um mês e meio de andamento e já estamos com uma lista de 179 peças para serem digitalizadas.”
Já com o apoio do Programa Rumos, do Itaú Cultural, está sendo desenvolvido o projeto Inéditos da Dramaturgia de Guarnieri e a Produção Cultural Crítica no Brasil a Partir dos Anos 1950, proposto pela pesquisadora Ligia Rodrigues Balista, da FFLCH, em parceria com o CDT.
O coordenador ainda menciona um trabalho de iniciação científica que está orientando, cuja proposta é reconstruir a história dos festivais de teatro. Para isso, a pesquisa está partindo do acervo de Ruth Escobar, “uma mulher que foi importantíssima para o teatro, para a política, tornou-se uma liderança feminista” e que criou o primeiro festival internacional de teatro, em 1974.
O acervo de Ruth Escobar chegou ao CDT em 2019, mas, por conta das restrições da pandemia, ainda está sendo processado. “Abrindo as caixas, nos espantamos e ficamos felizes, porque tem muita coisa salva que imaginávamos desaparecida, como registros de peças famosas dos festivais, em diversos formatos de vídeo”, diz Martins. A presença de releases e clippings de imprensa, por exemplo, cuja intenção no passado era uma, hoje assume outra função: “Recuperar informações que permitam não só o registro, mas também uma reconstrução mais precisa do que foi essa história”, explica o professor.
A professora Elizabeth comenta que, conforme o acervo vai crescendo, mais espaço e recursos são necessários. “É por essas coisas que vamos lutando, explicando e mostrando a importância que isso tem para a cultura paulista e brasileira, para a identidade cultural de um país, de um povo com diversas facetas. Não fazemos história sem documentos”, reflete.
Ela acrescenta que a função da Universidade é criar e difundir conhecimento — e todo o material ali arquivado não só é ligado ao passado, como também alimenta a produção artística contemporânea. Os professores destacam, ainda, que o objetivo maior do acervo é, além de salvaguardar a memória do teatro, permitir e incentivar a produção de pesquisas.
Martins também comenta sobre a importância de participar de editais, internos e externos, e de realizar parcerias com outras instituições. “Somos atrelados a um departamento da Universidade, e atualmente temos bastante apoio da chefia, mas isso varia ao longo do tempo”, diz. Esse cenário resulta em recursos limitados e insegurança, o que pode ser contornado, em certa medida, pelo apoio dos editais e das próprias Pró-Reitorias.
“É um trabalho demorado, muito detalhado. Um acervo não é fazer uma digitalização selvagem. Ela garante o acesso, mas não a preservação, que demanda espaços adequados, com condições de guarda adequadas, e sempre em manutenção”, explica Elizabeth. “O objetivo final é disponibilizar a maior documentação possível para o maior número de pessoas, nas melhores condições”, finaliza a professora.
Mais informações estão disponíveis no site do Centro de Documentação Teatral (CDT) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
Por Jornal da USP