Álcool e cafeína são as drogas mais consumidas durante a pandemia, afirma o neurocientista americano Carl Hart — lembrando que a cafeína não está presente apenas no café e na barra de chocolate, mas também em analgésicos e inibidores de apetite.
No entanto, para quem acha que, findo o isolamento, haverá um número maior de alcoólatras e viciados em pílulas para emagrecer, Hart dá um freio.
Para o professor do departamento de Psicologia e Psiquiatria da Universidade Columbia, em Nova York, o maior consumo dessas substâncias não implicará dependência pós-covid.
Mas ele não duvida que essas drogas venham a ser acusadas de degringolar ainda mais a sociedade para tirar o foco da inabilidade dos governos de lidar com os problemas socioeconômicos advindos da pandemia.
Seria assim, em qualquer tempo e crise, com a cocaína, o crack e os opioides — estes últimos apontados como um dos fatores da redução gradativa da expectativa de vida nos EUA. “Culpar os opioides por qualquer diminuição na expectativa de vida é ignorância”, reage.
Hart vem na toada de “desmistificar que as drogas necessariamente fazem mal” pelo menos desde de 1995, quando recebeu um grupo de jovens negros em seu laboratório em Bethesda, no Estado americano de Maryland. Ali, viu-se numa armadilha.
Enquanto demonstrava na lousa a ação das drogas no cérebro, os alunos queriam saber por que os pais deles próprios consumiam as mesmas. Simples assim para os estudantes, mas complicado demais para um cientista como Hart, que até então se debruçara apenas sobre ratos de laboratório, nunca sobre humanos.
Não que fosse cru na experiência. A infância na periferia de Miami o fez presenciar gente próxima consumindo crack, cometendo crimes para garantir o consumo e se arruinando com morte precoce ou anos de prisão. Na sua cabeça, era certo que o caminho das drogas não tinha volta. Faltava confirmar isso.
Durante o pós-doutorado em Wyoming, no oeste dos EUA, agora lidando com gente, entendeu que essa dedução fatídica estava viciada.
A depender, por exemplo, da quantia de dinheiro que oferecia aos sujeitos de pesquisa, e isso fazia parte da metodologia da pesquisa, eles abriam mão das doses. Hart afirmou que esses consumidores de crack e de metanfetamina eram mais senhores de seu destino do que presumiam a academia e as severas políticas públicas de combate.
E passou a dizer em aulas e palestras: “Achei que seria capaz de curar a dependência em drogas, mas, ao longo dos anos, aprendi que o problema não era o vício, era a aplicação das leis”.
Aos 54 anos, o americano assina dezenas de artigos científicos na área de neuropsicofarmacologia e co-escreveu o livro Drugs, Society, and Human Behavior com o professor emérito de neurociência Charles Ksir. Em maio de 2014, esteve no Brasil para lançar “Um Preço Muito Alto: a Jornada de um Neurocientista que Desafia Nossa Visão sobre Drogas e Sociedade (Zahar)”, no qual explica seus estudos e narra sua trajetória até se tornar o primeiro professor afrodescendente da Colúmbia, famoso também pelo dreadlock, hoje levemente grisalho.
Hart voltou ao País em 2015, quando viralizou a notícia de que teria sofrido preconceito no hotel em que se hospedou, em São Paulo. Informação que ele desmentiu: “O que realmente importa são os negros discriminados dia após dia no Brasil, não um professor burguês, que se hospeda em hotel cinco estrelas”.
Num sabático até julho, Hart antecipa, sem entrar em detalhes, que seu novo livro traz um capítulo inteiro sobre o Brasil e sua política antidrogas. Drug Use for Grown-Ups: Chasing Liberty in the Land of Fear (Uso de drogas para adultos: em busca da liberdade na terra do medo) será lançado em janeiro e ainda não há previsão da edição em português.
Quais drogas têm sido mais consumidas nesses meses de pandemia?
Carl Hart — O álcool e a cafeína são as drogas psicoativas mais amplamente disponíveis. Portanto, são as mais consumidas. O álcool pode ajudar a aliviar a ansiedade, e a cafeína, a dar um impulso energético. Não é difícil perceber como essas qualidades podem ser benéficas em uma situação estressante como essa.
Você costuma apontar mitos sobre o uso de drogas. Quais identificou durante a Covid-19?
Hart — Os mesmos mitos persistem, mas o maior deles é “as drogas fazem mal”.
A maioria das drogas recreativas faz as pessoas se sentirem bem. Caso contrário, essas pessoas não as aceitariam. Qualquer atividade que valha a pena envolve riscos e benefícios. Voar de avião — ou andar de automóvel — traz o risco da morte. No entanto, praticamente todo mundo viaja por esses meios de transporte. Com as drogas não é tão diferente. A maioria das pessoas não morre por usá-las. É verdade que uma pequena porcentagem, sim. Mas os efeitos predominantes são positivos, como aumento da sociabilidade e euforia.
Segundo estudo do Centro Nacional de Estatísticas de Saúde, divulgado em 2019, milhares de americanos morrem anualmente de overdose de opioides. O consumo seria epidêmico a ponto de se tornar um dos fatores da redução gradativa da expectativa de vida nos EUA. Seus estudos confirmam essa informação?
Hart — Os eventos que levam a mortes relacionadas às drogas costumam ser muito mais ambíguos e complexos do que os relatos fazem acreditar. A noção de que “milhares de americanos morrem a cada ano de overdose de opioides” é enganosa.
Na maioria dos casos, mais de uma substância é encontrada no corpo da pessoa falecida, e as concentrações dessas drogas geralmente não são determinadas. Portanto, é difícil, senão impossível, atribuir a morte a uma única droga, porque não podemos saber qual delas, se é que alguma, atingiu um nível sanguíneo que seria fatal por si só.
Além disso, dizer que as overdoses de opioides diminuíram a expectativa de vida é simplesmente errado e imprudente. Em 2017, o número total de mortes nos Estados Unidos foi de pouco menos de 3 milhões.
As mortes atribuídas a opioides atingiram um pico de aproximadamente 47 mil, uma pequena fração do total de mortes. Em contraste, o número de mortes por doenças cardíacas e câncer foi de mais de 655 mil e 600 mil, respectivamente. Esses números são altos há muitas décadas. Da mesma forma, o número de americanos mortos por armas permaneceu em cerca de 40 mil por pelo menos três décadas. O mesmo se aplica às mortes por acidentes automobilísticos. Culpar os opioides por qualquer diminuição na expectativa de vida é ignorância.
Uma das alternativas para tratar a dependência de opioides é usando anfetaminas, e há quem proponha utilizá-las também para os dependentes de cocaína. Acha esses tratamentos procedentes?
Hart — A abordagem agonista (uso de uma substância capaz de provocar uma resposta biológica similar à produzida por outra) é o tratamento mais eficaz. Mas o verdadeiro tratamento agonista para a cocaína seria administrar a própria cocaína como parte desse tratamento.
Em novembro, Oregon se tornou o primeiro Estado americano a descriminalizar o porte de drogas pesadas, como cocaína, heroína, LSD e metanfetamina. Acredita que outros Estados americanos tenderão a fazer o mesmo nos próximos anos? Que impacto a descriminalização teria sobre o consumo dessas drogas no país?
Hart — Espero que outros Estados sigam Oregon, assim como ocorreu com a legalização da maconha em um terço do país. É a coisa certa a fazer. Ninguém deve ser preso pelo que colocou em seu próprio corpo. As pessoas estão apenas tentando se sentir bem. É ridículo prender alguém com base nisso. É como prender pessoas por se masturbarem. É bobagem. A legalização das drogas provocaria uma diminuição dramática nas prisões por esse motivo. Também aumentaria a qualidade dos medicamentos usados. Isso já ocorreu com o álcool e com a maconha nos locais onde a droga é legal.
O uso de drogas tem um forte componente cultural. Você vê alguma diferença importante a esse respeito, considerando a cultura ocidental e oriental, por exemplo?
Hart — É claro que as normas sociais influenciam a aceitabilidade do uso de drogas, o tipo usado, a hora do dia aceitável, entre outras coisas. Mas não acho que existam diferenças importantes entre o Ocidente e o Oriente que já não tenham sido observadas em subculturas na sociedade em geral – digamos, em um lugar como o Brasil. As normas culturais do brasileiro rico sobre o uso de drogas, por exemplo, diferem das normas dos brasileiros menos abastados.
No Brasil, a guerra contra a indústria do tabaco foi bastante eficiente. Se, em 1989, 35% da população brasileira fumava, até o ano passado essa proporção tinha caído para menos de 10%. Com o isolamento social em 2020, no entanto, teria havido um aumento de 34% no consumo de cigarros. Você já afirmou que o cigarro pode ser mais viciante que a cocaína. Como lidar com o aumento do tabagismo?
Hart – O trabalho dos funcionários de saúde pública é informar a população sobre os riscos associados a alimentos, ações, etc. A partir daí, os adultos devem ter permissão para tomar suas próprias decisões sobre se eles se engajam ou não em tais atividades. Fumar, por exemplo, pode aliviar o estresse, mas se essa atitude ou qualquer outra infringir os direitos de terceiros, as autoridades devem tomar medidas — se possível, sem proibir a atividade — para equilibrar a saúde pública com as liberdades individuais.
Por Uol