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Quem fala mais alto no vinho: homem ou natureza?

Terroir. Talvez não exista palavra mais “sagrada” e ao mesmo tempo “misteriosa” no mundo do vinho. Terroir e vinho parecem ser termos tão intrinsecamente ligados que, muitas vezes, soam indissociáveis, como se um fosse consequência direta do outro, ou, às vezes, até mesmo sinônimos. Vinho, todos sabemos o que é. Mas o que definiria o conceito de terroir?

O termo obviamente é francês (lê-se, portanto “terroar”), derivado do latim terratorium. Segundo o dicionário Larousse, significa o “conjunto de terras em uma região, considerado do ponto de vista de suas habilidades agrícolas e fornecendo um ou mais produtos característicos, por exemplo um vinho”. Mas esse conceito, quando visto pelos olhos da vitivinicultura costuma ser um pouco mais detalhado. Vamos então ao que diz o “Institut national de l’origine et de la qualité”, o INAO, órgão francês que controla as denominações de origem do país.

Segue: “Um terroir é uma área geográfica definida, na qual uma comunidade humana construiu, no curso de sua história, um conhecimento coletivo de produção, baseado em um sistema de interações entre um ambiente físico e biológico e um conjunto de fatores humanos”. E continua: “É o resultado do acúmulo de interações entre características de um determinado ambiente natural (solo, clima, etc.), um am – biente biológico (plantas, animais, microrganis – mos, etc.) e fatores humanos (história, cultura, tradições, know-how …) em um determinado lugar”. Tudo isso, segundo o INAO, cria um produto original, singular, único.

Há, porém, quem defina terroir como uma junção de solo e clima atuando sobre determinada variedade de vinha em uma área específica, escanteando o ser humano, minimizando sua presença na equação. Ou seja, afirmando que as características singulares do vinho de um lugar devem-se tão somente aos desígnios da natureza. “O vinho é feito no vinhedo”. Quantas vezes já não ouvimos isso de produ – tores por todo o planeta? Mas até que ponto a mão do homem é capaz de interferir em um vinho dito de terroir?

Homem fora da equação ou dialogando?

O crítico de vinhos Harvey Steiman uma vez escreveu: “Para mim, o terroir abrange a soma total das constantes de um lugar, incluindo composição do solo, latitude, elevação, contorno, exposição ao sol e clima. Não inclui manejo de videira, irrigação, extração de folhas ou qualquer outra coisa que os seres humanos possam fazer, especialmente qualquer coisa que acontece depois que as uvas são colhidas. É importante separar o que a Mãe Natureza nos dá. A variedade de uva é parte do terroir? Eu digo não, mas certos tipos de uva certamente expressarão um terroir específico melhor que outros. Vinificação? Não faz parte do terroir, mas cada escolha de um enólogo afeta sua expressão no vinho acabado. Como e quando esmagar as uvas. Fermentar em aço inox, concreto, madeira etc. Barricas novas ou antigas. Quanto tempo envelhecer antes de engarrafar. Essas são apenas algumas opções que afetarão significativamente o caráter do vinho. Dentro de uma região, a maioria dos produtores pode ter algumas dessas opções em detrimento de outras. Em algumas denominações europeias, essas questões são definidas por lei. Se é comum que as pessoas façam coisas de alguma forma em uma região, isso pode se tornar uma característica constante dos vinhos de lá. Alguns querem incluir ‘o trabalho do homem’ em sua definição de terroir. Mas isso é estilo regional, não uma expressão de terroir”.

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“Como enólogo, você é como um guarda de trânsito. Mas não em Londres, onde você aponta e as pessoas vão, porém em Roma, onde o que você diz é apenas uma sugestão” Santiago Achaval

Ou seja, em sua concepção, a mão do homem não pode interferir decisivamente no vinho, do contrário, isso não seria a verdadeira expressão do terroir local. Uma visão similar, mas não tão inflexível é a do enólogo argentino Santiago Achaval. “O que estamos fazendo com o vinhedo? No fundo, estamos negociando. Como enólogo, você é como um guarda de trânsito. Mas não em Londres, onde você aponta e as pessoas vão, porém em Roma, onde o que você diz é apenas uma sugestão. Você se senta com o vinhedo e diz: ‘Conversemos. O que quer fazer? Eu gostaria que fizesse isso, mas o que quer?’ É um diálogo sério, apesar da metáfora. Pois há uma proposta do enólogo e há uma reação do vinhedo. Diante dessa reação, faço outra proposta. Melhor talvez. É um diálogo lentíssimo, de anos”.

“Em termos gerais, os fatores [que determinam o terroir] são naturais e não cabem a eles a intervenção significativa do homem, exceto às que se referem ao microclima, podendo, por exemplo, favorecer uma maior exposição das folhas e ramos por meio de sistemas de condução de copa divididas ou regulando o regime hídrico através da irrigação, etc.”, diz o enólogo Diego Pulenta.

Homem decisivo

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“Não há lugar sem gente e não há gente sem lugar. É muito importante a intepretação de quem faz o vinho” Sebastián Zuccardi

Há outros, contudo, que apontam o papel do homem como decisivo não só na expressão do terroir, mas na produção do vinho em si. “O vinho é uma construção humana. Para mim, o estado natural do vinho é vinagre. Para mim, o vinho é uma construção humana assim como os terroirs. Essa ideia ou filosofia atual de voltar a um estado totalmente natural é um absurdo”, afirmou Jean-Charles Cazes, produtor do Château Lynch-Bages, em entrevista recente. Para Stefano Ruini, enólogo da Tenuta Luce, na Toscana, “o conceito de terroir é uma realização humana”. Ele diz: “Sem a humanidade, não há terroir. Sem homens, haveria apenas territórios não descobertos. O solo tem seu próprio potencial e meu trabalho é revelar essa potencialidade. O know-how utilizado na vitivinicultura leva à originalidade como expressão única, estilo único, não se pode fazer cópias, e também à tipicidade como reconhecimento do produto e reconhecimento da habilidade humana”.

Visão interessante também tem o enólogo Sebastián Zuccardi: “Não há lugar sem gente e não há gente sem lugar. É muito importante a intepretação de quem faz o vinho. E cada vinho tem que contar três histórias: a história do lugar, a história do produtor e a história do ano”. Ele diz que, quando mais jovem “queria fazer um vinho em que não se notasse a minha presença”. “E isso é impossível, porque ou cultivamos a vinha, ou a manejamos. Este vinho é a expressão deste lugar através deste produtor”, afirma.

Homem matou o terroir?

Há alguns anos, quando a indústria do vinho parecia cada vez mais focada em um estilo de vinho para conquistar paladares de consumidores que estavam influenciados pelo estilo “Robert Paker”, uma questão foi posta: “o terroir está morto?”

Muitos, principalmente na indústria norte-americana, chegaram a bater de frente com a participação cada vez mais decisiva das técnicas enológicas na formação das características de um vinho. Em 2002, um dos enólogos mais controversos dos Estados Unidos, Randall Grahm, questionou: “O terroir está morto? De repente, essa é a questão. Talvez porque estejamos sentindo a dor de sua ausência. Estamos sentindo sua perda. Sem terroir, a produção de vinho é um jogo vazio, uma sala de espelhos”.

Na época, o experiente enólogo Paul Draper já explicava que “um enólogo tem que estar muito concentrado em fazer com que o local forneça o caráter básico do vinho, e não em algo que ele faça”. “Se o terroir vai ser expresso, então o enólogo tem que deixar o vinho mais ou menos se fazer”, afirmou.

Aos poucos, a tendência de vinhos opulentos e o uso intenso da madeira, especialmente nova, foi sendo deixado para trás. “A madeira é um fator que padroniza bastante os vinhos. Com ela, não tem sentido essa busca de terroirs”, afirma a enóloga chilena Johanna Pereira. “Ao se padronizar, mata-se o vinho. Fazer o vinho para o mercado é uma bobagem. Fazer o vinho para os consumidores significa perder a alma. Quando falamos de vinhos de terroir, é preciso fazer as coisas de forma mais autêntica. Não se deve notar a mão de alguém. Isso é ir contra o conceito de um grande vinho”, defende o italiano Alberto Antonini, um dos mais prestigiados enólogos do mundo.

Mas e quando as produções são em grande escala, é possível revelar algo do terroir? Segundo a enóloga Rosemary Cakebread, não. “Quanto maior o volume de vinho, mais diversificado é o blend, e quanto mais você mistura, mais você tira o local da foto. É como um comitê: quanto mais pessoas envolvidas, mais genérica é a decisão. Por outro lado, quanto menor o vinhedo, mais você vê a marca, o caráter real de um determinado pedaço de terra”, revela.

A partitura do terroir

Um dos maiores especialistas em terroir da América do Sul, o chileno Pedro Parra, apelidado de “Sr. Terroir”, afirma que há algumas variáveis importantes na hora de encontrar o local adequado para produzir um determinado tipo de vinho. Segundo ele, é preciso levar em consideração condições de solo e clima que tragam certo equilíbrio e criam uma combinação perfeita, mas também não se pode deixar de lado o papel do homem.

“A segunda parte do terroir é a humana. Você precisa plantá-lo, cultivá-lo, desenvolvê-lo e depois fazer o vinho. Mas você não pode fazer isso se não tiver o terroir certo. Leva tempo para conhecê-lo, entendê-lo, vinificá-lo e cultivá-lo – pouco a pouco”, diz. Para ele, esse tempo significa uma geração, pois “as vinhas precisam crescer e depois você precisa aprender como vinificar o que tem”. “Leva tempo para saber quem você é. Como você pode vinificar o vinho se você não sabe do que gosta? Então, é sobre pesquisa pessoal, sobre quem você é e, em seguida, sobre como aprender a fazer algo que você gosta de beber”, aponta.

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“As pessoas podem aprender a ler a partitura, mas todo mundo tem uma interpretação diferente daquela música” Pedro Parra

Parra faz uma comparação interessante para exemplificar: “Um enólogo precisa aprender a tocar a música. As pessoas podem aprender a ler a partitura, mas todo mundo tem uma interpretação diferente daquela música – sua própria assinatura. É o mesmo com vinho, é muito pessoal”. Pensemos nas suítes para violoncelo de Bach, por exemplo. A clássica interpretação do russo Mstislav Rostropovich é completamente diferente da do norte-americano Yo Yo Ma, mas ambas, com certeza, primorosas, de dois instrumentistas geniais. Transportemos essa ideia, por sua vez, para um Grand Cru da Borgonha em que dois produtores diferentes criam vinhos de um mesmo terroir. Não é algo a se levar em conta?

“O terroir vai além do solo, além do clima, além da localização e exposição. Parece piegas, mas acho que a terra em si tem que ter um tipo de paixão. E também tem que haver paixão na produção de vinho”, afirma o produtor Doug Shafer. Esse tipo de devoção é compartilhado por ninguém menos que um dos mais famosos enólogos do mundo, Aubert de Villaine, do mítico Domaine de la Romanée-Conti. “Terroir é um pedaço de solo delimitado pelo homem, com certas condições climáticas, ideal para um certo tipo de vinho. É uma alquimia entre o homem e a natureza estabelecida pela história. O vinho que resulta de cada um desses solos tem a sua personalidade. O aroma e o paladar não são as coisas mais importantes — isso se altera a cada safra —, mas sim esta personalidade, que vem da terra. Uma energia que percebemos quando provamos”, afirmou De Villaine em uma entrevista em que resumiu também seu trabalho no vinhedo de Romanée-Conti: “Este pedaço de terra tem sido dedicado à excelência em fazer vinho há séculos. Meu trabalho é de guardião deste terreno”.

Para finalizar voltamos a uma máxima de Pedro Parra: “O terroir pode estar lá por si só, mas para mostrar isso no vinho, você tem que ter paixão e respeito por sua presença. Se você não respeita essa ideia, não pensa sobre isso, não se preocupa com isso constantemente, o terroir está completamente perdido”.

Arnaldo Grizzo, Revista Adega
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