No começo do século passado, a cidade de São Paulo queria ser Paris quando crescesse. E há exatos 110 anos, no dia 12 de setembro de 1911, esse sonho parecia estar se materializando. A razão? A tão esperada inauguração do Theatro Municipal, bem no coração da cidade, obra do escritório de Ramos de Azevedo e de clara inspiração na Ópera de Paris. Tudo bem que, como consequência, os paulistanos foram apresentados a um evento subjacente, que se tornaria cada vez mais realidade em seu cotidiano: um dos primeiros congestionamentos de automóveis de sua história. Claro que nada que se compare à Avenida 23 de Maio na hora do rush hoje, mas ainda assim um pequeno caos para uma cidade que não batia nos 350 mil habitantes. A Pauliceia ainda não era desvairada – faltava pouco – e a cidade estava longe de ser a megalópole caótica que viraria. Mas a inauguração do Municipal – com iluminação por energia elétrica, uma novidade que chamou a atenção das milhares de pessoas que se aglomeraram ao redor do prédio – era seu marco de emancipação, de satisfação à sua elite que clamava por algo que ressoasse Brasil afora e que a fizesse se sentir com os dois pés do outro lado do Atlântico. Conseguiu.
E o teatro surgiu para abrigar, principalmente, óperas, o máximo de sofisticação da época, ainda mais depois do incêndio que consumiu o Teatro São José. “O projeto de construção do Theatro Municipal demorou em torno de dez anos – o escritório de Ramos de Azevedo foi contratado, mas o projeto é dos Irmãos Rossi. Ele foi pensado para ópera porque esse era o grande espetáculo naquele momento, e isso faz com que ele tenha características muito próprias, como o formato da sala e do palco, por exemplo”, explica, em entrevista a Cláudia Costa, do Jornal da USP, o professor Lúcio Gomes Machado, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP). “Como trabalha com a voz humana, sem amplificação, é preciso ter uma dimensão máxima para o alcance da voz. Por isso tem essa forma de poço na vertical, e não uma plateia desenvolvida na horizontal, e é isso que permite que funcione adequadamente”, afirma.
O Theatro Municipal, nesses seus 110 anos de existência, viu desfilar por seu palco nomes que vão muito além da ópera, como lembra o professor Gomes Machado, já que, graças à sua concepção, ele era – e é – perfeito para espetáculos musicais não operísticos. Por lá se apresentaram desde bailarinos como Nijinski, Nureyev e Isadora Duncan, virtuoses como Magdalena Tagliaferro, Guiomar Novaes, Camargo Guarnieri e Arturo Toscanini, deuses da ópera como Enrico Caruso e Maria Callas, e artistas mais, digamos, populares, como Ella Fitzgerald, Duke Ellington e o grupo português Madredeus. Ao longo desse seu pouco mais de um século de existência, o Theatro Municipal foi, por assim dizer, se democratizando, dando espaço para outras performances que não apenas aquela para a qual foi pensado, se abrindo para outras linguagens da cultura. Mas também teve que passar por algumas recauchutagens. “O Municipal passou por duas grandes reformas. A primeira, quando Jânio Quadros era prefeito, na década de 1950, quando infelizmente ele trocou as cadeiras da plateia. E, mais recentemente, na década de 1980, quando foi realizado um grande restauro, muito bem feito, em que foram melhorados os camarins, o palco foi modernizado em termos de equipamento para cenografia, além de um controle de iluminação”, recorda o professor da FAU. “Outra reforma ocorreu na gestão do professor Carlos Augusto Calil, da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), na Secretaria Municipal de Cultura (2005-2012). Sua gestão foi exemplar para a reorganização funcional do Theatro Municipal e sua programação”, afirma.
Mas entre tantos eventos artísticos e culturais que o Theatro Municipal acolheu nesse pouco mais de um século, um permanecerá para sempre ligado à sua história: a icônica Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922. Até então, o Municipal cumpria bem o papel para o qual tinha sido criado, com a apresentação de dezenas de óperas de compositores os mais diversos, agradando a elite e apaziguando a alma dos saudosos dos salões franceses. Mas aí, gente do naipe de Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Ronald de Carvalho, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Victor Brecheret e Villa-Lobos – Tarsila do Amaral estava na Europa na época – resolveram fazer seu festival modernista entre as cortinas e paredes bem ornamentadas do vetusto teatro, inaugurando um outro momento das artes brasileiras. E, por tabela, chocando e indignando uma parcela da sociedade paulistana, que entendeu bem pouco daquilo que estava acontecendo ali.
Semana de três dias
Para entender a ligação entre o Theatro Municipal e a Semana de 22 – que está prestes a completar cem anos –, é preciso se colocar alguns pontos em contexto. Primeiro, não, a semana não durou sete dias. Na verdade, foram três: dias 13, 15 e 17 de fevereiro, com apresentações as mais variadas ou, como anunciava o jornal Correio Paulistano no dia 29 de janeiro, “a perfeita demonstração do que há em nosso meio em escultura, arquitetura, música e literatura sob o ponto de vista rigorosamente atual” – só faltou combinar com a plateia. No dia da abertura, por exemplo, 13 de fevereiro, o saguão do Municipal foi tomado por esculturas e pinturas que não necessariamente enlevaram o espírito dos presentes. E a fala de Graça Aranha sobre Arte Moderna não ajudou nem um pouco. No dia 15, Guiomar Novaes, contra a vontade de seus parceiros modernistas, tocou peças clássicas ao piano, Ronald de Carvalho leu o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira – que não pôde ir por causa de sua tuberculose –, uma crítica ácida ao Parnasianismo recebida quase com tantos apupos quanto a palestra de Menotti del Picchia sobre arte estética – a diferença é que, enquanto o criador de Juca Mulato falava, a assistência emitia também miados, latidos e outros sons nada laudatórios. Modernismo é isso aí? Não necessariamente. E no dia 17, para encerrar, talvez um pouco de tranquilidade: Villa-Lobos e seu piano. Só que houve um detalhe, que chamou mais a atenção do que as peças tocadas pelo maestro: ele entrou no palco de fraque – noblesse oblige – mas apenas com um pé calçando sapato. No outro, uma pantufa. O público interpretou aquilo como uma atitude futurista e desrespeitosa e vaiou o artista impiedosamente. Depois, Villa-Lobos explicaria: não havia nada de futurista ou de falta de respeito. O que havia era um calo inflamado.
Mas um ponto que deve ser ressaltado nessa relação umbilical entre o Theatro Municipal e a Semana de 22 é que, por mais que haja quem acredite nisso, não se tratou de uma “democratização” do teatro – que viria décadas mais tarde. O que aconteceu ali foi a elite falando com a elite – só que com a tecla sap desligada.
“É claro que a Semana de 22 representou uma profunda transformação dessa ideia de um templo aristocrático para o consumo das elites ou dos ricos de São Paulo. Mas essa leitura de que o Modernismo foi um movimento, digamos, democrático, não é real. É, sim, um movimento de renovação cultural. A Semana de 22, muito embora tenha um caráter transformador da cultura, ou das linguagens da cultura, não deixa de ser um evento de elite. Em primeiro lugar, porque ela é patrocinada por uma elite paulistana. Ninguém pode esquecer de figuras como Paulo Prado e, posteriormente, Dona Veridiana de Almeida Prado”, explica a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora e ex-diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Em segundo lugar, porque Oswald Andrade, por exemplo, a despeito de seu caráter, por vezes bastante iconoclasta, era um filho da elite. A realização dos eventos da chamada Semana Modernista no Theatro Municipal tem um duplo significado: de um lado, a de ir a um templo da cultura da cidade de São Paulo e, de outro, apontar no sentido de uma renovação”, contextualiza Maria Arminda. “Graça Aranha, que não era paulista mas que também participou, é um intelectual ligado às elites. Aquela fotografia célebre nas escadarias do Theatro Municipal espelha muito esse caráter misto: a renovação da linguagem e, também, uma expressão – que nem poderia ser diferente num país de analfabetos – de um impulso modernizante da cultura que vem dessas elites, tanto que foi patrocinado por ela”, afirma a professora.
Vasos comunicantes, Theatro Municipal, Semana de Arte Moderna e – por que não? – a própria Independência do Brasil estão interligados, ainda mais agora, com a proximidade do Bicentenário da Independência e os cem anos da Semana de Arte Moderna. Com o teatro, São Paulo queria mostrar sua pujança econômica e cultural. Já a Semana de 22, realizada justamente quando o País preparava-se para comemorar 100 anos de sua libertação de Portugal, pode ser autoexplicativo para muitos. Mas pode mesmo? Maria Arminda pensa um pouco além. “É interessante ainda falar sobre a simbologia que ela representa: a Semana Modernista de São Paulo ser realizada durante as comemorações de 100 anos da Independência – ou seja, a ideia de que teve a independência política e de que o Modernismo seria a independência cultural do Brasil. Seria um momento em que teríamos uma cultura que estivesse distante da norma culta de origem portuguesa e que fosse uma criação autônoma. Mas não é bem isso, não existe nenhuma linguagem de cultura absolutamente autônoma, que não tenha relação com nada”, explica. “A Semana de 22 é um movimento interno das transformações da cultura, concebido no seio da elite paulista, mas que teve um significado transformador”. E o Theatro Municipal de São Paulo foi, e sempre será, seu palco por excelência.
Por Jornal da USP