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Memória afetiva: os 110 anos do Teatro Municipal de São Paulo

Neste setembro o Teatro Municipal de São Paulo completou 110 anos de imensa e intensa contribuição ao imaginário paulistano, paulista e brasileiro, com a realização de todas as artes que nele puderam, e podem, ser encenadas.

É um prazer perceber, nas finas tramas da sensibilidade, como a memória fundiu impressões e sensações a fim de criar um todo novo, vívido, feito de muitas artes, em uma memória incomensurável de força comunicativa e afetiva. Qualquer cidadão de São Paulo, ou que pela cidade tenha passado em busca de sua efervescente agenda de lazer e cultura, terá uma história para contar a respeito do Municipal.

O teatro é o espaço da arte e da emoção, é o lugar em que lições para a vida inteira acontecem nas poucas horas que dura uma peça dramatúrgica, ou uma ópera, que casa tão bem as potências significativas e emotivas da música e das artes cênicas, fundindo uma à outra de tal forma que sequer conseguimos (ou quereríamos, caso fosse possível) separar uma da outra.

A obra operística tem a força significativa de uma sinfonia erguida nos alicerces e estruturas de uma peça de teatro. O palco é o caminho para a comunicação disso tudo, e foi no Municipal de São Paulo que essas sensações artísticas me foram oferecidas em amplitude e magnitude.

No ano em que me mudei para São Paulo a administração em curso colocava em andamento um dos mais ousados projetos de execução de óperas em espaço público do país. O festival de Manaus já existia e tinha — como tem — o seu lugar de prestígio e de reconhecimento, mas o que se via no Municipal de São Paulo, naquela época, era uma temporada anual de óperas, com agendamento prévio e margem de mais de ano entre o anúncio e a execução das óperas, num senso de organização raro para os padrões brasileiros.

No repertório e no elenco tínhamos o que de melhor havia no mundo. Tenores, sopranos, barítonos, coro e toda uma equipe internacional trazia ao palco o melhor da ópera italiana e alemã. Foi nesse contexto que tivemos, eu e muitos paulistanos de coração e de alma, uma formação como apreciadores leigos de ópera. Prossigo leigo, e assim pretendo continuar, por respeito a esse caminho tão profundo da música e das óperas. Leigo sim; insensível, não mais. O Teatro Municipal me deu a chance, eu apenas soube agarrá-la.

Os espetáculos eram pagos, mas a um preço acessível para a época. O melhor estava por vir: quando recebi por e-mail a agenda completa das óperas para o ano seguinte àquele a cuja temporada eu assistira pela metade, percebi que na semana anterior à da apresentação de cada ópera, uma palestra a respeito dela seria dada, no próprio Municipal. O especialista era convidado a explicar para o público não versado em ópera como apreciar o espetáculo e o que procurar enxergar em cada introito, cada cena, cada ato, enfim.

Foi um ano de modesto e humilde aprendizado, em que não apenas me deslumbrei ou me entretive com o evento; foi um ano em que aprendi. Sim, eu aprendi, naquele ano, mais do que a assistir óperas, por que é que elas são lindas e duram tanto tempo no espaço de nossa memória intelectual e afetiva, registradas por nossa retina espiritual.

O Teatro Municipal, lugar público encravado no centro do centro de São Paulo, palco da Semana de Arte Moderna e de tantos eventos históricos, para mim passou a ser, depois daquele ano, o teatro da ópera. Um espaço pelo qual tenho muito respeito e muita estima e, nesses tempos de pandemia, sinto também extrema saudade.

O Municipal tornou-se espaço de aprendizado, de crescimento. Se essa temporada de ópera vivida no Municipal não me tornou alguém melhor, garanto: tornou-me menos pequeno, com mais coisas em mim pelas quais ser responsável, pois sua grandiosidade avisa que os tesouros que de lá tiraremos precisarão ser valorizados e bem cuidados, pois receber tanta beleza em forma de conhecimento é uma grande responsabilidade.

Quando passo pelos arredores de onde ele fica, no centro da cidade, centro depredado e esquecido, envelhecido e sucateado, resigno-me como se o fizesse junto com ele, na imaginação de minha rendição que nunca vem, nem virá, fazendo-a nossa resignação calada, em um murmúrio audível somente a nós dois: r e s i s t i r e m o s.

Por Revista Bula

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