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Documentário recupera história de mulheres presas na ditadura. Assista ao trailer.

Annie Castro 

A advogada Maria Aparecida Costa, mais conhecida como Cida, tinha 24 anos quando foi presa pela ditadura militar brasileira. A também advogada Rita Sipahi tinha 40 anos e dois filhos pequenos quando se tornou presa política do governo militar. Embora não tenham sido presas juntas, ambas foram levadas para a Torre das Donzelas, nome dado ao conjunto de celas do Presídio Tiradentes, onde as presas políticas eram mantidas em São Paulo na década de 70. Cida foi para a Torre das Donzelas em 1970 e ficou lá por quase três anos. Rita, levada para o presídio em 1971, permaneceu lá por onze meses.

As memórias do cárcere, sororidade, censura, tortura e resistência que Cida, Rita e outras mulheres vivenciaram no Presídio Tiradentes são contadas no documentário ‘Torre das Donzelas’, com direção de Susanna Lira e estreia prevista para o próximo dia 19. O filme já venceu os prêmios de Melhor Direção de Documentário e Melhor Documentário pelos júris oficial e popular no Festival do Rio, de Melhor Filme pelo júri popular na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e do Prêmio Especial do Júri no Festival de Brasília.

Após saber da existência da Torre, a cineasta Susanna decidiu produzir um documentário para contar a história das mulheres que lutaram contra a ditadura militar no país e foram encarceradas no Presídio Tiradentes. “Eu comecei uma investigação sobre esse período porque eu queria falar de um modo geral sobre um relato feminino a respeito da ditadura, mas no meio da pesquisa eu cheguei nesse lugar, que é a Torre das Donzelas, e achei que a partir dele eu poderia falar de uma maneira geral como foi a luta das mulheres no Brasil na ditadura, partindo de único lugar”, explica a cineasta.

Não se sabe com certeza porque o conjunto de celas era chamado de Torre das Donzelas, mas, segundo relata Susanna, existem boatos de que tratava-se de um apelido carinhoso dado pelos homens presos políticos que estavam no Presídio Tiradentes: “Eles ficavam em celas lá embaixo e as mulheres na torre lá em cima. Essa torre parecia muito uma torre medieval, que remetia àquelas das donzelas de histórias. Então, eles apelidaram de uma maneira carinhosa e também irônica de Torre das Donzelas”. 

Para a construção do documentário, entre 2015 e 2017 Susanna entrevistou 35 mulheres, dentre elas estão nomes como a ex-presidenta Dilma Rousseff, Ana Bursztyn-Miranda, Maria Aparecida Costa, Rita Sipahi, Nair Benedicto, Leslie Beloque e Janice Theodoro da Silva, por exemplo. Segundo Susanna, foram realizadas entrevistas iniciais que tiveram cerca de seis horas de duração. “A partir desse primeiro relatos é que eu montei o roteiro para fazer o filme”, conta.

Como o Presídio Tiradentes foi demolido em 1972 para as obras de construção do metrô de São Paulo, a cineasta resolveu reconstruir o interior da Torre das Donzelas em um estúdio, onde as entrevistadas estiveram por cerca de 15 dias lembrando do espaço, revendo umas às outras e falando sobre suas memórias coletivas. “Uma coisa que o filme faz é um espaço de reconstrução desse lugar. Eu acredito que esse sistema de apagamento de memória é uma ferramenta da ditadura, porque ela apagou os espaços onde aconteceram as coisas e não tem como voltar lá e contar a história. Fizemos um exercício de resistência do ponto de vista cinematográfico ao trazer esse lugar de volta para que essas mulheres retornem e contem de fato o que aconteceu”, afirma Susanna.

Para a advogada Cida, que hoje tem 74 anos, o local onde o interior da Torre foi reconstruída virou um centro de memória e de revisitação. “Foi um momento em que, pela primeira vez, nós nos reunimos para conversar sobre uma experiência comum. Cada uma mantém em si o que viveu no presídio e é algo que segue vida afora. A gente ia lá no estúdio porque de repente foi um ponto de encontro com o passado. Isso foi muito tocante para todas nós”, relata Cida.

Interior da Torre das Donzelas foi recriado por Susanna com base nos relatos das entrevistadas. Foto: Reprodução/Youtube

Para Cida, revistar o cenário da Torre não foi uma experiência fácil, porém fez com que ela pudesse reencontrar diversas companheiras e, por meio das conversas que tiveram, ver que todas compartilhavam sentimentos muito parecidos sobre o período que viveram. “Tive a chance de elaborar tudo que havia vivido individualmente em conjunto, aprendi ou constatei coisas que eu pensava que eram só minhas, como a dificuldade em falar sobre o que aconteceu, todo o silenciamento”, relata.

Na opinião de Susanna, as histórias das mulheres mantidas no Presídio Tiradentes e de outras militantes da época foram pouco faladas ao até mesmo ocultadas após a ditadura militar porque “sociedades patriarcais e machistas tendem a dar o protagonismo aos homens, principalmente ao se tratar de um ponto de vista heroico” e, por isso, a história sobre a ditadura foi muito construída em cima dos homens que atuaram neste período. Porém, ela reforça o papel de diretoras e historiadoras em tornar visíveis e dar protagonismo para as histórias das mulheres que lutaram durante o período militar. “Não tenho dúvida de que as mulheres que as pessoas vão assistir no Torre são mulheres tão importantes quanto [Carlos] Lamarca, quanto [Carlos] Marighella e quanto outros homens que lutaram contra a ditadura militar”, diz Susanna.

Para a cineasta, falar sobre essas histórias é importante não só do ponto de vista de combate à ditadura militar, mas também por se tratar de militantes que, além disso, lutaram pelos direitos das mulheres, como acesso a anticoncepcionais e ingresso nas universidades, por exemplo. “Elas inauguraram para a gente não só a questão da luta pela democracia, mas também a luta pelos costumes. Elas quebraram muitos padrões e acho que é muito simbólico retratar essa geração que, além de tudo isso, ainda lutava pela democracia, que deu a própria vida, os próprios tempos de juventude para essa luta”, afirma Susanna.

Aos 81 anos, Rita acredita que o documentário, além de dar visibilidade a essas histórias, também é muito importante porque faz com que elas consigam criar coragem para falar do passado e das situações que vivenciaram. “Essas mulheres viveram todo um tempo continuando suas lutas sem se referir ao passado. Muito disso vem também do fato de que as torturas que aconteceram nas prisões deixaram essa marca, que é uma marca da violência, da repressão. O torturador continua dentro da mulher e dentro de todas as pessoas que foram torturadas”. Em função disso, ela afirma que o filme, por falar sobre esse passado, “faz com que essas mulheres consigam assumir um papel de destaque hoje e faz com que cada vez mais mulheres encontrem formas de resistir e de recuperar esse direito à memória”.

Para a cineasta Susanna, as histórias das mulheres que lutaram contra a ditadura são pouco faladas pela sociedade brasileira. Foto: Reprodução/Youtube.

‘Filme sobre memória, verdade e justiça’

A advogada Rita enxerga o documentário como “um filme sobre memória, verdade e justiça”. “A memória é um recurso que aquele que foi injustiçado, que foi vítima, tem para fazer presente a injustiça do passado. A memória não pode ser negada às pessoas, mas ela foi negada ao povo brasileiro durante muito tempo. Passamos por um período prolongado em que o esquecimento era a política dominante, em que a memória não se manifestava como lembrança das vítimas e em que ela não era tratada como um direito humano”, afirma Rita, que também ressalta que a memória funciona como um instrumento “para minar a impunidade de um silêncio que não passa”.

Dessa forma, ao trazer à tona as histórias de tortura, violência e vivências das mulheres presas na Torre das Donzelas, o documentário torna pública a memória de quem viveu durante a ditadura militar. “O filme possibilita essa discussão sobre memória hoje, o que é muito importante porque o que mais assistimos atualmente são mentiras sendo recontadas. Se a memória fosse processada da forma correta, a realidade do Brasil seria outra, porque é com a memória dos injustiçados que se constrói a justiça”, diz Rita, que integrou durante anos a Comissão de Anistia.

Ainda, para a advogada, o documentário não joga luz só às lembranças da ditadura militar, mas também de outros períodos do Brasil. “O filme vai além porque, ao trazer a memória da ditadura, nos faz pensar em outras memórias, como a dos primeiros habitantes do nosso país, a da escravatura, a da resistência participativa, a memória a favor da regularização das ocupações e dos direitos dos quilombolas”, explica. Para ela, ao ampliar a discussão e o debate sobre a memória das vítimas, o filme também traz para o presente um conhecimento sobre o passado, contribuindo para uma construção de pensamento acerca dos direitos humanos.

Para Cida, o documentário é uma forma de preservar a memória de todas as lutas contra a repressão da ditadura militar e mostrar para as novas gerações o que aconteceu durante aquele período. “É importante demais para as novas gerações o que significou a resistência, o que era ser mulher e o que as mulheres daquele tempo viviam ao assumir a participação feminina na luta contra a ditadura. As novas gerações têm pouco conhecimento e alguns nem acreditam que houve ditadura, ainda mais com o governo atual exaltando aquele tempo”, afirma. “Essa foi a luta da nossa geração. É preciso que as novas gerações conheçam o que aconteceu, se sensibilizem com o que foi e descubram quais serão suas lutas e formas de resistir agora”.

Segundo ela, a importância do documentário torna-se cada vez maior frente à realidade vivenciada pelo Brasil de “exaltação à violência, à tortura e aos torturadores militares”. “Hoje não temos uma ditadura tomada pelas armas, mas temos um processo de destruição democrática por dentro. Estão destruindo uma democracia que custou tanta vida, tanta luta, em que tantos desapareceram, foram torturados e resistiram”, pontua Cida. De acordo com ela, além de funcionar como um resgate histórico, o filme traz a mensagem de que “vamos resistir da maneira que pudermos e onde estivermos”.

Sororidade

Durante o tempo em que estavam mantidas na Torre, as mulheres desenvolviam uma relação de acolhimento umas com as outras, conforme conta Rita. “Nós convivemos em uma cela e essa convivência era muito intensa, porque fazia com que cada uma que estivesse passando por uma situação maior de dificuldade fosse acolhida por todas. Cada uma que chegava havia uma manifestação muito grande de acolhimento e preocupação”, relata. Segundo ela, enquanto estavam na Torre o individualismo deixou de existir entre as presas políticas.

“Nós viramos um coletivo e isso nos segurava, nos dava força. Havia divergências, claro, mas o que predominava era o afeto, a solidariedade. Queríamos transformar o mundo, mas como vamos transformar o mundo e não nos transformar umas com as outras? O objetivo da resistência e de uma sociedade justa e igualitária se manifestou na Torre”, diz Rita.

Além disso, a prisão também fazia com que elas compartilhassem aprendizados gerais – croché, bordado, línguas estrangeiras e habilidades culinárias, por exemplo – e realizassem debates acerca da realidade enfrentada pelo país naquele momento. “Nossa convivência fazia com que pudéssemos poder falar sobre a militância recente. Ali estavam pessoas de diversas organizações e isso foi uma grande condição para que a gente se entendesse, porque houve a possibilidade de conversarmos e fazer uma avaliação daquele momento”, lembra.

Durante gravações, mulheres entrevistas para o documentário puderam reviver a sororidade que vivenciaram na Torre. Foto: Reprodução/Youtube

A advogada conta que segue próxima de algumas das mulheres que foram suas companheiras de prisão na Torre, mas que perdeu o contato com outras devido a mudanças de estado ou de região. Porém, ela garante que a lembrança do período que passaram juntas no Presídio Tiradentes continua forte dentro de cada uma delas. Para Susanna, essa união criada entre as presas políticas é algo que torna a Torre especial. “Lá elas se uniram muito, lá o partido político e as crenças não importavam, o que importava era que eram mulheres que estavam tentando crescer”, afirma.

Para a diretora, essa troca de conhecimento entre as presas políticas fez com que elas saíssem da prisão “muito fortes e muito potentes”, tornando-se pessoas que “fazem história até hoje no Brasil”. “Eu acho que o filme traz em si a descoberta dessa sororidade, desse sentimento que aconteceu na torre e que, se a gente recuperar, podemos mudar muita coisa nesse país. O que eu aprendi com esse filme é exatamente a questão sobre a união das mulheres, sobre a força que tem quando a gente se junta”, define Susanna.

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