por Arnaldo Grizzo
Em 1224, Henri d’Andeli escreveu um poema com 204 versos intitulado La Bataille des vins (“A batalha dos vinhos”) em que narra uma jornada do rei da França, na época Felipe II (dito Augusto), em busca dos melhores vinhos do mundo.
Ele envia mensageiros a diversos reinos para que tragam amostras das melhores bebidas que encontrarem. Depois de um duro julgamento, em que padres chegam a excomungar as piores garrafas, um vinho da ilha de Chipre acaba coroado como o “papa” da degustação. Apesar do relato bonachão, acredita-se que esta foi a primeira tentativa feita na Idade Média para classificar vinhos qualitativamente.
Ou seja, há muito tempo o mundo do vinho vem comparando seus produtos e tentando entender quais são os melhores. Mesmo antes de ser criado um sistema de pontuação, as pessoas já buscavam classificar vinhos, produtores, vinhedos etc. Hoje, contudo, o modelo de escala de 100 pontos, criado e sedimentado por Robert Parker no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, é o considerado o mais interessante para avaliar e comparar rótulos, sendo adotado pela maioria dos críticos e competições de vinho do mundo.
Mas antes de chegar à escala de 100 pontos, vamos entender como as classificações evoluíram e como também se chegou a um impasse que pedia uma solução para que os consumidores entendessem a real qualidade de um vinho. Ah e não esquecendo que ADEGA também tem sua classificação, os pontos AD podem ser conferidos na nossa página inicial ou clicando aqui.
A história das classificações
Uma das primeiras compilações de vinho foi escrita pelo médico do imperador romano Marco Aurélio, Claudio Galeno. Por volta do ano 169, ele publicou seu De Antidotis, em que, além de fazer uma lista com todos os vinhos conhecidos do mundo, também escreve as primeiras “resenhas”, dando dicas de como avaliar, armazenar e envelhecer cada vinho. Não havia, no entanto, uma classificação por mérito ou qualidade.
Na Idade Média, o trabalho dos monges beneditinos em regiões como a Borgonha e Champagne, por exemplo, pavimentou o caminho para a demarcação de certas terras que geravam vinhos especiais. Algumas das primeiras noções de uvas melhores ou piores que outras surgiram dentro dos mosteiros e ajudaram a criar os conceitos de Grand Cru e Premier Cru, que viriam a ser mais precisamente mapeados séculos depois. Ou seja, nessa época, os monges já sabiam de onde vinham os melhores vinhos.
No entanto, entre as classificações mais antigas já registradas está a dos vinhos de Jurançon, cujos vinhedos teriam sido classificados por ordem de importância ainda no século XIV. No século XVI, coletores de impostos também teriam feito uma lista dos melhores vinhos e vinhedos de Gattinara, na Itália. Em 1644, o conselho de Würzburg, na região da Franconia, Alemanha, ranqueou qualitativamente os vinhedos da cidade.
Mas, a região que mais perto chegou de uma classificação qualitativa de vinhedos e vinhos foi Tokaji, na Hungria. A família Rákóczi introduziu classificações de qualidade de 1ª, 2ª e 3ª classe nos anos 1730, mas as vinhas só foram formalmente mapeadas mais tarde, por volta dos anos 1770, o que coloca a classificação húngara como uma das precursoras, antes mesmo da mais famosa, a Classificação de Bordeaux de 1855.
A vontade do imperador
A “Classification officielle des vins de Bordeaux” foi realizada a pedido do imperador Napoleão III (Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho do Napoleão mais famoso) à Câmara de Comércio de Bordeaux para a Exposição Universal de Paris de 1855. Napoleão queria mostrar ao mundo a pungência francesa e os vinhos precisavam estar à altura. Os comerciantes, então, elencaram 58 propriedades divididas em cinco categorias de acordo com suas reputações e, mais especificamente, seus preços de venda na época. Como os vinhos mais famosos eram da região do Médoc, a lista deixou de fora muitos dos grandes rótulos que temos hoje na margem direita, por exemplo.
Foi assim que quatro châteaux foram considerados Premier Crus (Lafite, Latour, Margaux e Haut-Brion – Mouton subiu de categoria posteriormente), seguidos pelos Deuxièmes Crus, Troisièmes Crus, Quatrièmes Crus e Cinquièmes Crus. Esta “primeira” classificação incluiu apenas vinhos tintos de Médoc, vinhos brancos doces de Sauternes e Barsac e um tinto de Graves (Haut-Brion). Mais tarde, outras regiões de Bordeaux também criaram suas próprias listas, como a conturbada classificação de Saint-Émilion, alvo de polêmicas há alguns anos, a classificação de Graves e os Crus Bourgeois, por exemplo.
A Borgonha mapeada
No mesmo ano da classificação de Bordeaux, em 1855, o cientista Jules Lavalle escreveu uma obra intitulada “Histoire et Statistique de la Vignes et Des Grands Vins de la Côte d’Or”, que teria sido baseada no livro “Statistique de La Vigne Dans Le Departement de La Cote-D’Or” publicado por Denis Morelot em 1831. Lavalle descreveu a história dos vinhedos na Borgonha e enumerou os principais crus. Em 1861, ele completou a primeira classificação sistemática de vinhedos, que serviu de base para os quatro níveis da classificação da Borgonha (Grand Cru, Premier Cru, Village e vinhos regionais) e foi avalizada durante a criação das denominações de origem francesas na década de 1930.
Vale apontar que, diferentemente da classificação bordalesa, baseada em propriedades e marcas, a borgonhesa está calcada na fama dos vinhedos. Ou seja, na Borgonha, diferentes produtores podem fazer vinhos Grand Cru desde que possuam partes desses vinhedos. Já em Bordeaux, um Sécond Cru nunca poderá produzir um vinho Premier Cru, mesmo que compre vinhedos de um vizinho com este status.
Uma busca do consumidor
Mas, fora das classificações oficiais, sempre houve quem buscasse avaliar e qualificar os vinhos. Alguns enófilos foram mais meticulosos que outros e acabaram por desenvolver listas mais precisas, como Thomas Jefferson, por exemplo. Em 1784, ele chegou à França como comissário do governo dos Estados Unidos e, em suas viagens pelo interior do país, passou a anotar os melhores vinhos que provava, dividindo-os em categorias, esboçando o que, anos mais tarde, viria a se tornar uma classificação.
Mas o nome mais importante da história da crítica de vinhos do mundo é André Jullien. Diz-se que, com cerca de 30 anos, ele – natural do Loire – mudou-se para Paris e ingressou no comércio de vinhos, e fez várias melhorias nas práticas, com invenções que foram premiadas em várias exposições e contaram com o apoio do ministro Jean-Antoine Chaptal – sim, o criador da chaptalização.
Todavia, seu nome ficou marcado na história do vinho graças a um trabalho hercúleo que tomou forma em 1816. Seu livro “Topographie de tous les Vignobles Connus” (Topografia de todos os vinhedos conhecidos) criou a catalogação mais abrangente das regiões vinícolas do mundo. Além de falar sobre as terras europeias, ele também descreveu as técnicas de vinificação cossacas, estilos de vinho de Hindu Kush (no Himalaia) e Astrakhan (na Rússia), pesquisou os vinhedos de várias ilhas nos oceanos Atlântico e Índico, ou seja, viticulturas ainda desconhecidas até então por boa parte dos bebedores de vinho da Europa.
Os escritos de Jullien sobre Bordeaux incluem uma das primeiras classificações de propriedades da região com Haut-Brion, Margaux, Latour e Lafite listados entre os melhores vinhos, por exemplo. Uma característica importante de seu trabalho foi a classificação de todos os vinhos em cinco categorias – que viria a ser usada na Classificação de 1855.
Os críticos
Apesar de pioneiro, Jullien não foi o único a querer catalogar e listar os melhores vinhos. Em 1824, o négociant alemão Wilhelm Franck elencou 408 propriedades em 41 comunas no Médoc, criando quatro classes em seu “Traite sur les vins du Médoc”. Trabalho similar fez Paguierre, um comerciante de vinhos, em 1828, ao lançar o “Classification et Description des Vins de Bordeaux et des Cépages particuliers au département de la Gironde”, onde também dá uma das primeiras classificações dos vinhos bordaleses.
Em 1846, contudo, de uma colaboração entre um professor inglês com um livreiro francês surgiu talvez o mais importante livro sobre Bordeaux, considerado a principal obra de referência sobre vinhos e até hoje a fonte de informação mais abrangente sobre as vinícolas locais. Naquele ano, Charles Cocks e Michel Féret publicaram “Bordeaux, its Wines and the Claret Country”.
Com 84 páginas contendo observações históricas e avaliação dos vinhos, a obra foi escrita em inglês e editada em Londres. Ela foi posteriormente traduzida para o francês e publicada na França em 1850. Mesmo após a morte de Cocks em 1854, o livro continuou sendo atualizado e republicado. Hoje está em sua 18º edição em francês.
O surgimento dos críticos de vinho parece ter ocorrido na virada do século XX. A primeira edição da Revue du Vin de France é de 1927. Mas devido a um mercado pungente, alguns dos mais proeminentes críticos da época foram os norte-americanos. Frank Schoonmaker, então editor de guias de viagens, passou a escrever artigos sobre vinho para a revista New Yorker nos anos 1930. Schoonmaker, assim como seu colega, Alexis Lichine – que, em 1962, publicaria uma revisão da classificação de Bordeaux de 1855 – estava ligado ao comércio de vinhos. Além de serem dois dos pioneiros na crítica e terem alavancado a cultura do vinho entre os consumidores menos entendidos, também trabalharam junto com a indústria, ajudando os produtores a entender os gostos dos consumidores e facilitar a comunicação com eles. Tanto que incentivaram a rotulação de variedades, algo que se tornou comum até hoje.
No anos 1940, o jornalista Robert Balzer era um dos nomes mais importantes da crítica de vinho na América, publicando artigos em jornais, editando livros e criando as primeiras newsletters sobre o assunto. Mas, no começo dos anos 1970, parece que houve uma febre da crítica do vinho nos Estados Unidos. Em 1972, Robert Finigan começou a publicar suas newsletters mensais falando sobre vinhos californianos e europeus. Ele foi um dos primeiros a provar vinhos en primeur diretamente nos Châteaux. Alguns anos depois, em 1975, surgiu a primeira edição da revista inglesa Decanter, fundada por Colin Parnell e Tony Lord. No ano seguinte, Bob Morrisey fundou a Wine Spectator como um tabloide baseado em San Diego. Três anos depois, o atual editor, Marvin Shanken a adquiriu. Em 1978, o guia Gault & Millau incluiu pela primeira vez um número especial sobre vinhos e, em 1984, lançou seu primeiro guia de vinhos da França. Três anos depois surgiu o guia Gambero Rosso, que se tornou o mais importante da Itália.
Parker e os 100 pontos
Todos os críticos de então tentavam classificar os vinhos de alguma forma, seja por estrelas ou pontos, com critérios nem sempre muito claros. Depois de uma viagem à França, apaixonar-se por vinho e perceber que as críticas nem sempre eram muito claras e objetivas, um advogado de Baltimore chamado Robert Parker decidiu que iria escrever a respeito de vinho e pontuá-los usando a escala de 100 pontos. Em 1978, ele publicou a primeira edição da The Wine Advocate. Ele comprou algumas listas de correspondência de varejistas de vinho e enviou 6.500 cópias gratuitas.
Seu trabalho foi, aos poucos, chamando a atenção de mais e mais enófilos muito devido às suas resenhas mais diretas, descrevendo as qualidades do vinho de forma que qualquer um pudesse compreender, mas também devido à pontuação, numa escala que os norte-americanos estavam acostumados e que parametrizava os vinhos, facilitando as comparações. Em 1982, sua fama explodiu devido à crítica que fez da safra de Bordeaux. Contrariamente à maioria dos críticos, americanos e também franceses, Parker apontou que 1982 era um ano grandioso, dos melhores para as propriedades bordalesas, visão que foi encampada por comerciantes e tornou o nome Parker reverenciado.
Intragáveis e perfeitos?
Robert Parker criou o sistema de classificação na primeira edição de The Wine Advocate, pois achava que os sistema de 20 pontos (bastante difundido até então), não fornecia flexibilidade suficiente e geralmente resulta em classificações “comprimidas e/ou infladas”. A escala de 20 pontos havia sido criada na Universidade da Califórnia, Davis, e, teoricamente retirava pontos dos vinhos por defeitos ou falhas apenas. Na escala de 100 pontos, a divisão é a seguinte (segundo Parker):
- 96 a 100: Um vinho extraordinário, de carácter profundo e complexo, apresentando todos os atributos esperados de um vinho clássico da sua casta. Vinhos deste calibre merecem um esforço especial para encontrar, comprar e consumir.
- 90 a 95: Um vinho excepcional de excepcional complexidade e caráter. Em suma, estes são vinhos fantásticos.
- 80 a 89: Um vinho pouco acima da média a muito bom, exibindo vários graus de finesse e sabor, bem como caráter, sem falhas perceptíveis.
- 70 a 79: Um vinho médio com pouca distinção, exceto que é um vinho bem feito. Em essência, um vinho simples e inócuo.
- 60 a 69: Um vinho abaixo da média com deficiências perceptíveis, como acidez e/ou tanino excessivos, ausência de sabor ou aromas ou sabores possivelmente sujos.
- 50 a 59: Um vinho considerado inaceitável.
O que seria um vinho perfeito para Parker? Em um entrevista em 2007, ele tentou explicar: “Há sempre a questão: há perfeição no vinho? Eu sempre tentei explicar isso dizendo que sou uma pessoa muito apaixonada e emotiva. Eu realmente acho que provavelmente a única diferença entre um vinho de 96, 97, 98, 99 e 100 pontos é realmente a emoção do momento. Acho que quando olho para trás, todos os vinhos que provei – agora provavelmente perto de 300.000 vinhos – menos de 1/10 de um por cento já obteve 100 pontos. O que é muito pouco. Mas ainda são cerca de 120 vinhos”.
Mas, em outra entrevista em 2015, o crítico deu mais detalhes sobre seu conceito de pontuação de vinhos acima de 90 pontos, dando a entender que os rótulos que alcançam 90 pontos já seriam “perfeitos”, sendo que os pontos adicionais teriam mais a ver com a longevidade. “Sim, os últimos 10 pontos são dados para o potencial de longevidade. De 90-100 é equivalente a uma nota A e é dada apenas por um esforço notável ou especial. Os vinhos desta categoria são os melhores produzidos do seu tipo. Há uma grande diferença entre um 90 e um 99, mas ambos são nota máxima”. Depois de sua aposentadoria, contudo, essa explicação foi retirada do site da Wine Advocate.
Enfim, esse é um resumo da trajetória da classificação dos vinhos na história. Por tudo isso, hoje o consumidor tem bases para sustentar suas escolhas, mesmo quando não conhece os vinhos que está comprando. E, com tanta informação, pode-se dizer que não há vinho no mundo que já não tenha sido avaliado.
Por Revista Adega