São Paulo — No imaginário de mais de uma geração de brasileiros, a emancipação política do país está associada à pintura Independência ou Morte, de Pedro Américo (1843-1905). Com seus personagens e ambientação altamente idealizados, a obra conferiu tom épico a um acontecimento que, segundo testemunhas da época e pesquisas históricas posteriores, teria sido bem menos glorioso.
Atendendo a encomenda do governo imperial, Américo pintou o quadro em Florença, na Itália, e o entregou em 1888. Embarcada para o Brasil desmontada, a pintura, de 4,15 por 7,60 metros, foi apresentada pela primeira vez ao público brasileiro já no período republicano, em 7 de setembro de 1895, durante a inauguração do Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga.
Permaneceu, desde esse dia, no salão nobre, como a peça mais importante do acervo. E, reproduzida em livros didáticos, tornou-se uma espécie de retrato oficial da nacionalidade.
Assim como o museu que a abriga, a tela Independência ou Morte está passando por um minucioso processo de restauração. Além de reparar danos causados pela ação do tempo, os restauradores buscam devolver à pintura suas cores originais – retirando a sujidade acumulada com o tempo, recompondo pontos de perda na camada pictórica original e retirando vestígios de restauros antigos, como um amarelado indevido em certa região do céu.
Para isso, contam com assessoria especial de dois pesquisadores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP): Marcia Rizzutto, professora, e Pedro de Campos, pós-doutorando supervisionado por Rizzutto. E de duas pesquisadoras do Instituto de Química da USP: a professora Dalva de Faria e a pós-doutoranda Isabela dos Santos. Veja também
O trabalho de Rizzutto é apoiado pela FAPESP no âmbito do Projeto Temático “Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento”, coordenado por Ana Magalhães. E o trabalho de Faria é financiado por meio do Projeto Temático “Espectroscopia vibracional com resolução espacial”, coordenado por Mauro Ribeiro. Além disso, a FAPESP financia a bolsa de pós-doutorado de Campos.
“Empregamos técnicas físicas e químicas com equipamentos portáteis que fornecem informações dos materiais e do processo criativo usado pelo artista. Entre os métodos empregados estão imageamento por reflectografia de infravermelho, espectroscopia por fluorescência de raios X e espectroscopia Raman. A imagem em infravermelho permite visualizar os traços iniciais, a grafite ou carvão, que Pedro Américo recobriu depois com camadas de tinta. As técnicas espectroscópicas possibilitam determinar a paleta de cores e, por decorrência, sugerir os pigmentos usados originalmente pelo artista. Permitem ainda identificar pigmentos alterados ou que possam ter sido empregados em restaurações anteriores”, disse Rizzutto à Agência FAPESP.
Campos explicou mais detalhadamente a técnica de espectroscopia por fluorescência de raios X. “Ela é feita por meio de um arranjo experimental composto por um tubo e um detector de raios X. Nesse arranjo, a radiação é emitida sobre a pintura e as áreas irradiadas respondem reemitindo também raios X, em diferentes patamares de energia, que são coletados pelo detector. Os raios reemitidos dependem dos elementos químicos presentes em cada área: chumbo, ferro, cádmio etc. Dessa forma, é possível inferir os elementos químicos presentes na composição das tintas originais e nas de restauros anteriores”, disse.
Esses métodos de análise podem fornecer informações iniciais aos restauradores sobre os materiais e técnicas construtivas empregados pelo artista e, desse modo, assessorá-los em sua atividade. Já possibilitaram, por exemplo, a identificação das intervenções anteriores feitas sobre as nuvens do céu.
Com a técnica de imagem em infravermelho também foi possível enxergar na obra informações muito interessantes escondidas sob camadas de tinta. Por exemplo, alguns “arrependimentos”: figuras que Pedro Américo havia pensado em incluir no conjunto e, depois, preferiu omitir. É o caso da imagem de um cavalo, “visível” apenas no infravermelho.
“Uma vantagem de usar essas técnicas físicas é a portabilidade dos equipamentos – uma grande comodidade para obra desse tamanho. Com aparelhos portáteis, podemos subir no andaime e medir as várias colorações existentes na tela.
Com fluorescência de raios X e Raman portátil, medimos 350 pontos, mapeando toda a pintura. A sistematização dessa quantidade de dados permite identificar os elementos existentes e sugerir os pigmentos ou misturas usados pelo artista”, afirmou Rizzutto.
No entanto, como certos elementos químicos podem estar presentes em mais de um pigmento, o processo de identificação pode deixar dúvidas. Para dirimi-las, os restauradores contam com o trabalho de laboratório das pesquisadoras do Instituto de Química, que usam microscopia e espectroscopia de bancada, com maior poder de resolução.
“A identificação do elemento químico não permite determinar de modo inequívoco o material usado. É preciso saber de que substância esse elemento químico participa. Por exemplo, o ferro pode estar presente no óxido de ferro III, que é vermelho, mas também no hexacianoferrato férrico, que constitui o azul da Prússia”, disse Faria à Agência FAPESP.
Para determinar a substância, Faria adota uma técnica chamada de microscopia Raman. O procedimento exige a coleta de fragmentos microscópicos do quadro – o que é feito pela pós-doutoranda Santos, também responsável pelas análises. “Passamos com suavidade uma agulha em lugares específicos da tela.
Fragmentos de 20 a 30 micrômetros [equivalente à milésima parte do milímetro] ficam aderidos à ponta da agulha por eletricidade estática. São eles que analisamos no microscópio. Conseguimos analisar fragmentos da ordem de poucos micrômetros”, contou Faria.
“Como a técnica não é destrutiva, os fragmentos são preservados para análises futuras, se necessário. Ou, então, podem ser analisados por Microscopia Eletrônica de Varredura com Espectroscopia por Dispersão de Energia (SEM-EDS), que fornece a distribuição de elementos químicos nas amostras. No caso desta obra, a análise da distribuição de elementos químicos no fragmento tem a função de complementar os resultados obtidos pelos aparelhos portáteis”, acrescentou.
Perícia e sensibilidade
O trabalho do restaurador exige sensibilidade artística e perícia técnica, além de uma assessoria científica confiável. Yara Petrella, doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP e especialista em conservação e restauro do Museu Paulista, é a coordenadora da equipe de seis restauradoras que estão trabalhando no quadro de Pedro Américo. Prestes a se aposentar, depois de quase 30 anos de atividade, a restauração de Independência ou Morte é uma espécie de grand finale da carreira bem-sucedida.
“Restauração é sempre um desafio – ainda mais tratando-se de uma obra com a importância histórica do quadro Independência ou Morte. Felizmente, podemos contar com a orientação dos pesquisadores das áreas de física e química da USP.
O princípio básico é o de que precisamos conhecer muito bem o objeto para poder restaurá-lo. Então, começamos com um levantamento documental das fichas existentes no museu. Fizemos depois uma análise fotográfica com lâmpada ultravioleta. E fomos acumulando informações”, disse Petrella à Agência FAPESP.
O trabalho de sua equipe começou com uma limpeza geral, com água deionizada, para eliminar a sujeira acumulada no quadro ao longo de anos. Depois, foi retirado, com gel de xileno, o verniz que recobria a pintura.
“Temos certeza de que houve três intervenções anteriores na obra: duas delas feitas por pintores e a terceira, em 1972, por um restaurador. Esses trabalhos produziram algumas modificações na região do céu – principalmente do lado esquerdo, onde havia pontos de perda na camada pictórica. A região toda foi restaurada em áreas maiores do que as áreas das perdas. Então, sabíamos que um procedimento importante era a remoção dessas áreas restauradas. Já fizemos isso. E não foi tão difícil como imaginado inicialmente”, afirmou a restauradora.
O passo seguinte, que está ocorrendo agora, é reparar meticulosamente os pontos de perda existentes na pintura original. Segundo Petrella, os restauros anteriores foram feitos com tinta a óleo – material que endurece com o tempo e já não é mais usado em trabalhos de restauração atuais.
“Hoje, usamos pigmentos com Paraloid B72 ou tintas prontas para retoque, mais reversíveis caso se necessite restaurar novamente no futuro”, disse.
Terminado o trabalho de restauro, o quadro será recoberto com verniz de alta qualidade, que resiste a muitos anos sem amarelecer. A restauração da pintura está sendo feita no próprio salão nobre, sem retirar a tela do chassi. “No momento não há justificativas para desmontar toda a pintura, procedimento que poderia provocar danos à moldura – em folha de ouro –, que também está sendo restaurada”, concluiu Petrella.
Por Exame