Foi o poema A Morte É que Está Morta, de autoria de Mario Quintana, que levou o estudante de engenharia Victor de Oliveira Dias a começar a escrever em meio à quarentena imposta pelo novo coronavírus. O texto serviu de inspiração para que ele se reunisse virtualmente com um amigo dos tempos de escola e desse início a um projeto poético e audiovisual, com reflexões sobre a morte, a ser tocado em dupla no tempo de confinamento. “Senti cansaço de ser passivo com as artes, de apenas absorver”, relata Victor.
O jovem continua com os compromissos da faculdade, mas diz que, em casa, sua agenda está mais flexível. Se por um lado a quarentena adia vida e planos, outras atividades – que na correria do dia a dia costumam ficar para depois – ganham espaço. É o caso da escrita, que também passa a funcionar como memorial dos dias de confinamento. Pensando nisso, a reportagem ouviu escritores e suas dicas sobre como começar a escrever neste período.
“Se escrever é algo que você quer fazer, mas, por alguma razão, sempre tem uma desculpa para adiar, esta é uma oportunidade”, diz a poeta e escritora Angélica Freitas. Autora dos títulos Rilke Shake e Um Útero É do Tamanho de um Punho, ela conta que, embora confinada, mantém seu ritmo de escrita, e inventou até uma forma de não perder a conexão com o mundo. “Como eu não posso sair à rua ver pessoas, tenho observado o movimento da minha janela. Tento imaginar para onde vai quem passa por aqui.”
Para ela, ter um caderno por perto e se comprometer a escrever sempre no mesmo horário são ótimos primeiros passos. “Eu gosto de começar e terminar o caderno; funciona como um incentivo”, conta Angélica. “Acordo, faço um café, volto para a cama e escrevo. Acho esse horário, quando você acabou de sair de um sonho, muito propício para inventar coisas.”
Mais assertiva, a escritora e crítica literária Noemi Jaffe afirma que, “para escrever, é preciso escrever”. “Não espere uma inspiração, porque ela só vem quando a gente senta para escrever. Não espere nada”, afirma ela, que tem se dedicado a escrever e publicar nas redes sociais um diário da quarentena. Em uma postagem feita no dia 2 de abril, por exemplo, ela relata as “paranoias” com a pandemia: “Minhas discussões com o João são quase sempre sobre arrumação e higiene – eu mais desencanada; ele mais atento. Mas hoje era eu ‘paranoicando’ nas embalagens, com água sanitária, esponja e cansaço, e ele ‘não é pra tanto’”.
Na visão de Noemi, esse momento seria muito favorável para a escrita, justamente por ser um período de introspecção e solidão. Mas, como o confinamento é forçado e vivemos preocupados com o que pode acontecer, fica mais difícil conseguir um ingrediente que ela considera fundamental: a concentração.
Apesar disso, Noemi vê na escrita um gesto de transformação, uma maneira de, com o mal-estar e a imprevisibilidade da situação, fazer palavras. “Quando faço isso, me alivio”, conta ela, que também aplica essa potência em sua vida íntima. “Faz pouco tempo que perdi minha mãe, então, acabei escrevendo muito sobre ela neste período.”
Para quem quer começar a escrever, ela sugere um mergulho em assuntos desconhecidos. E, em tempos de coronavírus e ciência no noticiário, tema não falta. “(Pesquise) sobre astronomia, sobre alguma planta, sobre cavernas francesas. Qualquer assunto que você não domine nada, mas pesquise em detalhes, vá entender a anatomia do besouro. Assim, você descobre assuntos que não têm nada a ver com sua realidade, e isso é muito inspirador.”
Na caixinha de ferramentas de Noemi e de Angélica, estão também os desafios verbais. Pode-se tentar, por exemplo, escrever um texto sobre amor sem usar a palavra “amor”, ou um texto sem usar nenhuma vez a letra “e”. Explorar uma história já conhecida pela perspectiva de outra personagem ou, ainda, escrever um poema para os cinco objetos mais próximos de si.
Enquanto isso, Michel Laub, autor de livros como O Tribunal da Quinta-feira e A Maçã Envenenada, diz achar a quarentena um período difícil de “se desligar”. “Eu já estava escrevendo, terminando um livro, então estou aproveitando para tentar fazer isso. Mas, como todo mundo, minha rotina mudou um pouco, também porque estou muito preocupado. É difícil parar para escrever como há dois meses”, diz ele.
Laub ainda reflete: “Neste momento em especial, essa é uma questão de classe média. Quem tem tempo e condições de sentar, ter um pouco de paz e escrever é quem tem o que comer, quem tem um teto para dormir. Acho que o recorte social vai ficar mais agudo neste momento, porque as pessoas estão preocupadas em sobreviver.”
Em sua visão, soma-se a essa preocupação a “angústia normal de quem escreve no Brasil”, diante da “irrelevância da ficção, da arte” para boa parte da sociedade. “Já é um desafio em épocas normais, porque o mundo hoje presta pouca atenção nisso. E agora tem também a angústia material e de como será o mundo daqui para frente”, avalia.
Foi a angústia do confinamento que impôs ao escritor Geovani Martins uma mudança de ritmo. “Eu estou em quarentena faz aproximadamente um mês, e senti a dificuldade de produzir e crescer à medida que a quarentena foi aumentando”, conta ele. “Acho que tem a ver com uma incapacidade de ignorar o que está acontecendo lá fora. As notícias e a preocupação vão chegando.”
Para Martins, que usa o que ouve nas ruas como material para escrita, o isolamento social também é uma barreira criativa. “O trabalho fica com mais do que a solidão necessária – você acaba ficando sem ter como trocar sentimento, como trocar ideia.”
Segundo o escritor, a crise instaurada abalou algo muito importante para quem lida com a criação, “o significado das coisas”. “Se seu trabalho não faz sentido, ele não anda. Então, acho que é uma luta pelo significado – por que contar histórias agora?”
A saída que ele encontrou foi buscar um tema que tivesse a ver com o momento atual. Martins passou a se dedicar a um projeto mais curto, em forma de roteiro teatral, que fala sobre uma família em quarentena. E sua dica é certeira: “O principal é encontrar alguma coisa que vai te mover neste momento, que não tem sido normal na vida de ninguém”.
Por Exame